quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Nascer

Cecília Zatelli, este é o meu nome, que por força do destino nem com o casamento mudou, porque não houve cerimônia civil. Nove horas da manhã do dia 24 de setembro do ano 1932, manhã de primavera cheia de sol, nascia uma menina, a de número 13
de uma família muito pobre. Veio fazer companhia às nove irmãs e três irmãos. Peço licença ao leitor para escrever os nomes dos que compõem minha família:
Papai: Giacinto Zatelli;
Mamãe: Maria Kretzer Zatelli;
Filhos: Conceta, casada com Giacinto Dalpiaz (* irmãos);
Egília, casada com Arcângelo Dalpiaz (* irmãos);
Letícia, casada com Quiliano Purim;
Cirilo, casado com Alida Odorici;
Maria, casada com Vitório Pedron;
Ferdinando, casado com Elza Cristofolini;
Olímpia, casada com Silvério Matedi;
Nicolau Kretzer, casado com Elza Marquardt.
Clara, casada com Arthur Taffner;
Ana, casada com João Leithold;
Catarina (** gêmeas), casada com Alois Schmidt;
Olinda (** gêmeas), casada com Ludovico Holler;
Cecília, vivendo maritalmente com Theobaldo Hagedorn.
Nomes em negrito: irmãs e irmãos por parte de pai.
Nome em italic: irmão por parte de mãe.
Os demais são filhos comuns do casal.
Meu pai, Giacinto Zatelli, veio da Itália, da cidadezinha de Matarello, junto com os pais dele, Andrea Zatelli e Ana Toller Zatelli. Chegou no Brasil ainda criança. Como imigrantes, desbravaram as terras para plantar milho, arroz irrigado e principalmente aipim, que era meramente para o próprio sustento. Meus avós tiveram sete filhos, porém dois morreram ainda pequenos e sobre eles nada sei. Cinco se criaram e tiveram suas famílias: José, Giacinto (meu pai), Valente, Affonso e Alberto. Não tiveram sequer uma filha. Adulto, meu pai se casou com Aurélia Perini, com a qual teve sete filhos, sendo cinco mulheres (Egília, Conceta, Letícia, Maria e
Olímpia) e dois homens (Cirilo e Ferdinando). Meu pai instalou-se num pequeno povoado chamado Encruzilhada (Crozzara), porque bem no centro do lugar havia o cruzamento entre duas ruas, em Pomeranos Central, que mais tarde passou a se chamar Arrozeiras, já que arroz era o principal produto dos imigrantes: finalmente o local
recebeu o nome de Rio dos Cedros (porque tinha muitos rios bem bonitos com águas muito limpas e era rico em árvores chamadas cedro), passando a ser distrito do município de Timbó. Aliás, dali se extraia a madeira para as construções. Todo o corte era feito à base de machado, já que ainda não existiam serrarias, como hoje. A
mulher de meu pai faleceu quando deu à luz o oitavo filho, que levou com ela.
Minha mãe também era viúva, eu nunca soube o nome do marido dela, porém tinha um filho, Nicolau. Então meu pai e minha mãe, viúvos, se encontraram e casaram e dessa união nasceram mais cinco filhas (Clara, Ana, Olinda e Catarina - gêmeas - e eu). Meu pai tinha uma pequena ferraria onde fazia foices, enxadas, machados e o
famoso ferro de cortar arroz, que os italianos chamavam de zerla. Ele ainda limpava as patas (os cascos) dos cavalos e as ferrava, colocando as ferraduras para que o animal não machucasse as patas no serviço. Eu ajudava o pai a puxar um fole, que ateava o fogo para esquentar o ferro, deixando-o maleável para depois malhar. Esse fole era conhecido como montex, que nós crianças chamávamos de "tom bededec", porque era esse o barulho que ele fazia quando a gente puxava a alavanca. Ele fez parte da Segunda Banda Musical do Rio dos Cedros em 1914, tocando clarineta, seu instrumento preferido. Meus avós maternos eram José Kretzer e Clara Weizer. Ambos foram criados em Salto Weizbach, próximo a Blumenau, onde se casaram e tiveram cinco filhos, sendo quatro homens (Francisco, José, Arthur e Ricardo) e uma mulher, Maria, minha mãe. Também trabalhavam na lavoura e tiveram um pequeno engenho de farinha, faziam fubá de milho e ainda o tradicional mus, doce feito com garapa de cana, laranja ou tangerina. E eram muito felizes. Quando moça minha mãe casou-se e ficou viúva antes mesmo de nascer seu primeiro filho. Sei ainda que meu avô era filho de imigrantes que chegaram no Brasil por São Pedro de Alcântara, SC em meados do século XIX.
Encontrei em registros de Imigração um Franz Krätzer (*1795), casado com Anna Maria Gansen (*1799) na Alemanha, onde tiveram vários filhos, que imigrou para aquela localidade em 1841, porém não sei se são meus parentes. Uma vida aconteceu num lugarejo chamado Encruzilhada, município de Timbó, distrito de Arrozeiras, em Santa Catarina, Brasil. Essa criança sou eu, que depois de muitos anos resolvi escrever algo sobre minha vida, porque acho necessário lembrar o passado e só deixá-lo morrer comigo. Minha vida de criança transcorreu normalmente, como a de todas as crianças daquela redondeza, pobres porém felizes. Aos sete anos fui matriculada na escola local, chamada Escola Mista Estadual de Pomeranos Central. Sempre fui a primeira da classe, menos em um ano, quando toda a classe "rodou" por falta de professores, havendo poucos dias de aula durante todo o ano. Este foi o meu primeiro fracasso, fiquei muito triste. No caminho da escola eu gostava de brigar com os colegas,
nunca levei desaforo para casa. Junto à professora eu sempre dava um jeitinho de ser a vítima e a culpa caía sobre as outras meninas; por isso era chamada de "a protegida da mestra". Minhas professoras foram dona Ema Sampaio Rosa, dona Célia Ambrósio Soares e dona Isolete Mafra. A de quem eu mais gostei foi a dona Ema, que era casada com Antônio Rosa. Um velhote, chamado Victor Manoel Schneider, era
empregado deles. (O "seu” Victor, aproximadamente 30 anos após, já casado com dona Margarida de Souza - dona Lica -, acabou sendo inquilino nosso - meu e de meu marido - na casa onde hoje funciona o 507 Atelier de Cerâmica, na rua Venâncio da Silva Porto, 507. Ele morreu pelos idos de 80, com 82 anos.) Dona Ema e “seu” Antônio não tinham filhos, mas adotaram um menino. Eu gostava muito dele. Seu
nome era João, era negro, aliás, o único negro de toda a região, já que aquela era uma vila só de italianos, e toda a sala de aula gostava dele porque era diferente de nós e de tudo o que tínhamos visto. Aos oito anos eu ajudava a dar aula, quando a mestra se encontrava doente (1). Estudava pela manhã e, à tarde, trabalhava na casa de minha irmã Olímpia, cuidando das crianças dela. Foi lá que comecei a enfrentar a vida, sentir saudade de tudo e de todos da família, pois muito pouco eu ficava em casa e, quando estava, à noite, tinha que fazer minhas lições de aula. No fim desse mesmo ano tomei >(1) Ajudar a mestra a dar aulas significava tomar as lições dos colegas, passar no quadronegro os deveres para o dia seguinte e recolher os cadernos para correção, que era feita pela professora. Além disso, integrava o chamado Pelotão de Saúde, fazendo pequenos curativos quando necessário.>a Primeira Comunhão e não pude comprar o retrato de lembrança porque nem papai, nem minha irmã, onde eu trabalhava, se lembraram de dar dinheiro para que eu pudesse comprá-lo: essa foi minha segunda desilusão. Levando uma vida normal fui crescendo, conclui o curso primário e fim das aulas, pois não podia continuar por falta de recursos. Assim, passei a me dedicar aos serviços da roça, principalmente lidar com cavalos, carroças e zorras (2). Apanhava trato para o gado e às vezes tombava a zorra: se não quebrasse tudo, recolocava no caminho e tocava adiante. Tinha dias em que ainda cuidava das crianças: aliás, esse era o meu fraco. Apanhava delas e não reagia nunca, tanto que numa ocasião um filho de minha prima, que tinha apenas dois anos, quase me cegou, batendo na minha vista com um pau. Então a mãe do menino quis surrá-lo. Eu interferi e disse que a criança não teve culpa, pois eu poderia ter tirado o pau da mão dele antes que isto viesse a acontecer. Daquele dia em diante passei a ajudar só minhas irmãs, a Clara e a Olímpia, que eram as que tinham crianças, e não fui mais na casa de minha prima, porque mamãe não deixou. A minha juventude foi muito feliz, digo feliz porque sempre tive saúde. Quanto ao trabalho, bem, eu trabalhei muito, mas isso não me fazia infeliz, muito pelo contrário, me enriqueceu a alma e me fez sentir um ser humano normal. Fui uma moça como outra qualquer: amei, chorei, rezei, dancei, passeei, briguei, senti muito saudade e muita fome, também. Às vezes sentia-me desprezada por todos. Só quem sempre me amou realmente e me entendia, inclusive me ajudando muito e levando muitos segredos meus para o túmulo (e tenho muito respeito por eles, porque também irão para o túmulo
comigo) foi minha mãe, que indiscutivelmente foi também minha melhor amiga. Mãe que até hoje admiro, embora não esteja mais entre nós. Além de mãe, carinhosa e grande amiga, também foi minha confidente. Que Deus a tenha perto de si e, se não for pedir muito, reserve um lugarzinho para mim também. (2) Zorra - Slita / Schliten espécie de carro puxado a bois ou a cavalos, sem rodas, como um trenó, suportado por dois pedaços longitudinais de caibros, próprio para o transporte de produtos da roça até os ranchos próximos da casa. Era muito útil especialmente em terrenos muito dobrados. Corria o ano de 1946. Ao completar 13 anos minha casa já estava reduzida a quatro filhos e os pais, pois o restante havia casado e constituído o próprio lar. Meus pais venderam a propriedade que tinham em Pomeranos Central e mudamos para o interior de Jaraguá do Sul, num lugar chamado Alto Garibaldi (São Pedro). Era um lugar muito pobre, viviam ali descendentes de imigrantes, poloneses em maior número, mas também tinha descendentes de italianos e
alemães. Então meu pai já não trabalhava mais como ferreiro e era agricultor. Minha mãe tocava a atafona (3) de fubá de milho. Era muito bom, só que tudo muito longe do comércio, da farmácia, enfim, de tudo. Por nosso terreno cruzavam dois riachos. O que passava na frente de casa movia a enorme roda d'água, que movimentava a atafona, e no dos fundos eu sempre ia pescar, já que tinha muitos
peixes e a água era muito limpa. Os peixes eram uma delícia. As quatro filhas solteiras - Ana, Catarina, Olinda e eu - também trabalhavam na roça, mas por pouco tempo, já que logo depois fomos uma a uma saindo em busca de emprego em casas de família. Algum tempo depois casariam a Ana, a Catarina e a Olinda. Eu continuei no meu emprego. Os colonos trabalhavam na roça plantando milho, arroz, tabaco, taiá japão, aipim e batata doce. A única coisa que vendiam mesmo era o tabaco, o resto ficava para o povo comer, e tratavam os porcos, as galinhas e o gado também com a sobra desses alimentos. Daí vendiam o leite e quando tinham algum porco sobrando, que não precisassem abater para o sustento, também era vendido para arrecadar um dinheiro para os impostos e roupa, remédio e ainda alimentos que não se colhiam na roça. Meus pais tinham um moinho para fazer fubá e isso rendia um pouco mais para eles, mas mesmo assim nós ficamos pouco tempo morando lá, nós não nos acostumávamos com o tipo de vida que as pessoas tinham. Uma ocasião, o meu pai foi a cavalo, que era a única condução que por lá existia, para onde nós morávamos antes, resolver uns
problemas e, na volta, uma trovoada o surpreendeu e ele parou numa casa que ficava na serra, antes de chegar na nossa casa, e lá ofereceram café, porque era tudo gente conhecida, eles se chamavam (3) Atafona - Moinho manual ou movido por cavalgaduras; moinho de colonos movidos à roda d'água, para beneficiamento de grãos.Biernascki, eram poloneses. Meu pai pensou que era banana frita que serviram com o café, então a mulher disse: "não, seu Giacinto, são lesmas do xuxuzal"... Meu pai, gentilmente, agradeceu e disse que não estava com fome, só ia tomar um café. Quando a chuva passou ele foi para casa, e contou para a minha mãe que "esse povo come as lesmas do xuxuzal", que aliás nós conhecíamos, e por sinal eram muito nojentas: quando a gente tocava nelas expeliam um leite e nós achávamos que era veneno. Ah!, que lugarzinho chato, aquele! Nós sentíamos tanta saudade da terrinha que havia ficado para trás e que não tinha volta... Sair de um lugar civilizado para morar no meio do mato, no meio de gente rude, analfabeta, suja e, acima de tudo, muito briguenta... A saudade apertando e nós, uma a uma, nos dispersando. O moinho foi vendido alguns anos depois para Artur Fachini, que
morava no rio Sapo, entre o rio Ada e o rio dos Cedros. O tempo passou e nós fomos deixando a casa dos pais para trabalhar na cidade, como empregadas domésticas. Saímos de casa as três irmãs: Ana, Catarina e eu, Cecília. Nós fomos trabalhar em
Jaraguá do Sul. A Ana se empregou na casa do senhor Romeu Bastos e dona Helga Fiedler Bastos. Eu tinha então 15 anos e fui trabalhar de camareira e lavadeira num estabelecimento chamado Hotel Cruzeiro, que ficava na rua Marechal Deodoro da Fonseca. Era um hotel de caminhoneiros. A maior parte deles vinha do Rio Grande do Sul. Havia também alguns tropeiros que vinham pegar o gado na Estação Ferroviária e iam levando a tropa até Timbó, Indaial e Blumenau. Lembro do nome de dois deles: um se chamava Wili Winckelhaus, o outro era conhecido como Früstick (4) e era um caboclo. Uma vez trouxeram a tropa pela rua Marechal Deodoro da Fonseca (o hotel
estava localizado justamente nessa rua, esquina com a rua Cabo Harry Hadlich) e um boi entrou pela porta da frente do hotel e saiu pelos fundos, nós quase morremos de susto, pois o animal estava bravo e teve que ser abatido ali mesmo: ele estava desgarrado da tropa. Lá batalhei, ralei bastante, levantava às 4 horas da madrugada mas ia dormir só entre as 24 horas e uma e meia, até que o serviço acabasse. Os patrões eram tão gananciosos que tínhamos que comer comida quase estragada, para não jogar fora. (4) "Früstick" - Apelido que o caboclo ganhou porque todos os dias em que chegavam no Hotel, o Winckelhauss irrompia pela porta da cozinha pedindo pelo café da manhã: früstick. Como o caboclo não falasse alemão, quando ele chegava no hotel sozinho repetia a única palavra que aprendera: früstick. naturalmente era atendido. E a palavra virou seu apelido, a partir de então. A outra minha irmã, a Catarina, não veio até a cidade, empregou-se na casa do casal Peters. Eles tinham comércio em Garibaldi, na entrada de Jaraguazinho, na antiga propriedade do senhor Walter Marquardt (atual Pesque-Pague Garibaldi). Suas duas filhas, a Terezinha e a Iracema, foram muito amigas de minha irmã: quando minha irmã casou a primeira filha se chamou Iracema e a segunda Teresa, homenagem às filhas dos patrões.
Eu, ovelhinha caçula de casa, trabalhando no hotel. Era um lugar onde vinha gente de toda a espécie e os patrões, embora muito ranzinzas e chatos, eu gostava deles. Eram o senhor Oscar Röeiter e sua esposa, dona Rosa. Tinham um filhinho de quatro meses, chamado Randolf, ao qual me apeguei como se fosse meu irmãozinho. Talvez, a
exemplo desse menino, eu tenha criado mais tarde meu próprio filho, isto é, como se fosse a jóia mais cara do mundo, que aliás meu filho para mim é tudo o que tenho de bom neste mundo. E foi ali, nesse emprego, que conheci um rapaz, sobrinho do patrão. Começamos a namorar, o nome dele era Felix Röiter. Mas a diferença entre nós era
muito grande. Ele era filho de gente rica, enquanto eu não passava de uma empregada e de religião oposta a dele. Eu era católica, ele era luterano (*). Por isso os tios dele não consentiam no nosso namoro. Mesmo assim passamos algum tempo flertando, aproveitando quando os tios não viam e começávamos assim, meio escondidos. Mas eu não
continuei com esse namoro porque não era nosso costume namorar escondido. Eu era tola naquele tempo, mas pensei bem e achei que o amor é a coisa mais linda para os jovens, e um namoro escondido não poderia ser sincero: embora eu gostasse muito do rapaz, procurei me afastar dele. Um casal de Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul, observando o carinho e a paciência que eu tinha para com o filho dos patrões, chegou
a querer me levar com eles, só para tomar conta das crianças, porque eles sempre viajavam e me conheceram no hotel, onde eles se hospedavam. Os nomes deles eram senhor Valdemar e dona Maria da Silva. Os meus patrões não sabiam que esse casal queria que eu fosse com eles, e talvez com mais um pouco de insistência eu os
acompanhasse, mas Deus me deu um aviso. (*) N.A. - Nessa época, e até a década de 60, havia muitas dificuldades em conciliar ambas as religiões, especialmente para casamentos. É muito feio, eu sabia, mas a tentação me fez por as mãos nos documentos que estavam sobre a mesa do dormitório do casal, a mesa lavanderia (5).Sendo camareira e arrumadeira, eu entrara no dormitório para arrumar as camas. Não raro sobrava para mim também esvaziar os penicos, que ficavam sob as camas. Ao ver os documentos percebi que eram diferentes um do outro: a dona Maria, que parecia tão honesta, era casada com outro homem. E ele, da mesma forma, já havia dado seu nome a outra mulher. Daí tirei minhas conclusões e achei que seria melhor ficar nessa ratoeira do que embarcar numa canoa furada. Quando uma pessoa, seja moça ou rapaz, atinge os 17 anos, começa a sofrer por qualquer coisa que seja. Eu fui uma moça que sofri por tudo: por desilusão, por amor, por raiva, por paixão ou pena. Por desespero, por alguma grande alegria, enfim, tudo me fazia chorar com facilidade. Quando eu recebia uma carta de meus pais, parentes ou amigos, eu chorava de saudade, de alegria, de tristeza, sei lá, eu era uma chorona. Mas no fundo, no fundo, eu tinha e tenho um grande coração.
Outros moços quiseram namorar comigo, mas eu tinha medo que alguém nos contrariasse, ou que talvez eu não conseguisse gostar o suficiente para fazê-lo feliz ou, da mesma forma, me sentir feliz. O tempo passou e, após quatro anos trabalhando nesse hotel,
quis variar um pouco e passei para outro hotel, em outra cidade, chamada Pomerode. E o hotel também se chamava Hotel Pomerode, e pertencia a família de dona Elsa Haass e seu esposo. Lá não fui camareira nem arrumadeira, e sim garçonete no restaurante anexo, mas foi ali que comecei a pagar os pecados que havia cometido até então. Aquilo era um inferno na Terra, não pelo serviço, mas pela caretice dos patrões e, muito em especial, do filho do patrão. Levantava às quatro e meia da manhã para atender ao movimento do primeiro ônibus. Cabe salientar que o local era ponto
de ônibus, além de hotel e restaurante. Pois bem, como já disse, levantava às quatro e meia da manhã para atender ao primeiro ônibus, que era da Auto Viação Catarinense e chegava às cinco, às seis chegava o ônibus da Transportadora Penha, às sete chegavam dois ônibus da Andorinha. (5) Mesa lavanderia é mesa com bacia, que substituía a pia em hotéis e residências antigas. E assim era o dia todo, até as dez horas da noite, um corre-corre terrível. E quando a gente errava ao abrir uma garrafa de qualquer bebida, era descontado no salário do fim do mês; se quebrasse uma xícara ou um copo era a mesma coisa, fim de mês vencimento mais
curto. Como se isto não bastasse, duas das empregadas eram redondamente quadradas. Elas perseguiam a mim e mais outra como se fôssemos escravas. Pela Páscoa elas ganharam muitos presentes: chocolates, vestidos, aventais, inclusive jogos de louça, enquanto eu e a outra ganhamos um saquinho de pipocas. Disseram que não podiam dar mais presentes porque fazia pouco tempo que ali estávamos prestando serviços. Eu era muito boa mas não dava o outro lado da face para esbofetearam, que isto já era, morou? Peguei o saco de pipoca e simplesmente joguei pela janela, no outro dia pedi minha conta e fim de papo. Voltei novamente a Jaraguá do Sul e me empreguei no mesmo hotel de antes. Mas nesse meio tempo meus pais haviam vendido novamente a propriedade em Alto Garibaldi e foram morar num lugar chamado Barra do Rio Cerro. As minhas irmãs já estavam todas casadas. Aconteceu que eu sempre repartia o salário com meus pais, para ajudá-los. Meu cunhado pediu-me que voltasse para casa e cuidasse
de meus pais, já que estavam sozinhos, mas em casa não ganharia o suficiente para o nosso sustento, pois o terreno ali era pequeno. Como deveria agir? Então eu fiz a proposta: Continuaria no emprego e daria o dinheiro para os meus pais, mas essas condições não atendiam a situação, pois meus pais precisavam de alguém junto deles para ajudálos. Eu não ficando em casa, automaticamente aquilo que era meu, que
de direito me pertencia, iria para meu cunhado, então o arrimo de família. Embora minha vida tenha sido um verdadeiro Calvário e levei anos para chegar ao cimo, já que comecei do zero. Não guardo meu mágoa contra meu cunhado ou minha irmã, muito pelo contrário, adoro eles demais, nós nos damos muito bem. Quando aparecia uma
chance era também certo um grande obstáculo, que se erguia à minha frente e me derrubava sem dó nem piedade. Eu continuei no emprego e o meu cunhado teve o que sempre quis e nunca teve antes. Meus sobrinhos cresceram lindos, maravilhosos, sadios e eu os amava demais. Se minha irmã me escrevia uma carta dizendo um deles estar doente, "ai meu Deus", eu rezava tanto e pedia a Deus para que essa criança ficasse boa logo. Assim, comecei a ficar um pouco sentimental e passei a fazer versos nas horas vagas. Lembro de alguns:

"A saudade é um ai magoado
É uma dor que dói na gente
Que é recordar o passado
E é machucar o presente."

"Se vires um pássaro branco
No ar fazendo mesuras
Diz que é minha saudade
Que está em volta à tua procura."


Além disso, eu gostava de ouvir música, de cantar e até de assoviar e, por isto, me apelidaram de canária. O tempo foi passando. Depois de minha primeira desilusão amorosa tornei-me uma pessoa fechada e cheia de complexos. Eu me achava feia; aliás, isto eu pensava que os outros achavam. Andava mal vestida, mal vestida sim, porque eu não podia comprar roupa boa e bonita, custava caro. Depois, para que eu deveria me vestir e arrumar bem, para chamar a atenção das pulgas e dos ratos, que à noite faziam estrepolias em meu quarto de dormir? Às vezes chegava a ter inveja das outras moças, que tinham tudo, e ao mesmo tempo mudava de idéia e pensava comigo mesma: "ah, deixa isto pra lá, um dia também hei de abraçar algo concreto, em que também tivesse uma segurança, algo na vida que pudesse dizer isto é realmente meu". E eu, pobre moça, esperava com muita paciência.Lembro bem quando fiz 18 anos, minhas colegas vieram me felicitar logo pela manhã e foi aquela alegria, me abraçaram e ríamos contentes. Não levou cinco minutos e lá vieram, do sótão, os patrões e
podem fazer idéia do que aconteceu... Foi aquela barbaridade, chamaram a minha atenção e claro, a patroa disse que por causa de uma porcaria de um aniversário tínhamos de fazer tanto barulho que incomodamos o sono deles, e vejam bem, eram sete horas da matina e nós já estávamos cansadas de trabalhar, pois que acordávamos às
quatro. Fiquei tão decepcionada que parecia terem se fechado todas as portas e janelas, e que aos meus pés se abria uma vala e eu cairia lá no fundo. Não disse um apalavra, saí dali e fui continuar meus serviços, mas o meu coração estava partido ao meio. Certa vez adoeci, sofri uma inflamação muito grande nos rins, de repente: começou num sábado, senti um pouco de dor mas não falei nada. Domingo, quando quis levantar, não pude mais andar, a dor era tanta e tão forte que havia paralisado as pernas e, se eu teimasse em dar o passo, cairia: fui obrigada a deitar de novo. A moça que trabalhava comigo avisou a patroa, mas foi em vão, ninguém se incomodou. Pelo contrário, a patroa programou um passei para Vila Itoupava, e lá se foram ela, o marido, o filho deles e a filha da cozinheira, de nome Emi, que contava tudo o que escutava, e que eles comentavam a meu respeito. Bem, fiquei de cama sem poder me mexer, deu meio dia e eu nem tinha tomado café. Que domingo maravilhoso, vocês não acham? Esperei o almoço e nada, ninguém vinha me ver para saber se estava viva ou morta. Às três horas da tarde subiu até a porta do quarto o tal sobrinho da patroa, de nome Félix, que foi meu namorado, e ele perguntou " o que é que você tem?" Eu fiquei com vergonha de responder e só disse "não posso andar, e tenho fome, não comi nada hoje". Ele disse que minha colega de serviço só falou à tarde que eu estava doente, até ali ele pensava que eu viajara com os patrões, e disse mais, "vou trazer comida para você, nem que para isto eu tenha que brigar com a cozinheira", e lá se foi ele correndo escada abaixo, como um raio. Naquele instante pensei, puxa! como é bom saber que alguém gosta da gente, que alguém sente algo pela gente, nem que seja pena, sim, porque do jeito que eu estava, só pena poderiam sentir de mim. Não demorou e ele voltou com um prato de comida sortida: arroz, salada de batatas, um pouco de macarrão e dois pedaços de carne de galinha. Adivinhem o que eu fiz?... Devorei aquilo tudo num instante, pois estava faminta. Então o rapaz perguntou o que mais eu queria que ele fizesse por mim, eu disse que saísse do quarto, que já seria uma grande coisa, e depois podia escrever uma carta para meus pais, ou trazer papel, caneta e envelope que eu mesma escreveria. Foi o que ele fez, e segunda-feira ele enviou a carta, e quarta-feira minha mãe já veio me visitar. Momentos há na vida em que a gente fica sem ação. Por exemplo, numa ocasião de emoção a pessoa fica tão
atrapalhada que é capaz de dizer bobagens, se for dizer algo. Juro por Deus que assim fiquei quando vi minha mãe, puxa, que coisa boa, depois de um longo período de tempo, em que só se via rostos mal humorados e até tristes, às vezes, de repente um rosto lindo, "lindo de viver!" aparece. Mesmo que a gente estivesse esperando essa pessoa, da para ficar sem ação, entende? Pelo menos eu fiquei assim quando vi minha mãe, que até parece ter amenizado minha dor. Ela ficou muito triste e com razão, porque eles nada tinham feito por mim, e resolveu me levar dali. Feito por mim tinham, sim, comprado remédio para os rins, e devo dizer que me havia feito bem, mas o pior era que eu não tinha o descanso suficiente para a minha recuperação. Acabei ficando até arranjarem uma substituta e, então, adeus mesmo. Mas em casa eu não podia ficar, porque não tinha como ganhar dinheiro. Era longe da cidade e, na roça, já não dava mais para ficar, pois só com meus pais - e já velhos -, como poderíamos tirar o sustento da terra, pois faltavam braços? Meu cunhado abancara-se na
propriedade dos meus pais e eu perdera totalmente minha casa. Pelo amor de Deus!, ali ficaria só até arranjar outro emprego. Estávamos então no mês de março de 1952.
Ali estava eu sem emprego, sem herança (*) e quase sem esperança. O tempo foi passando como o desenrolar de uma fita, e nela estava gravada minha vida, em que todos os dias podia ver um novo capítulo. Novo, sim, no modo de falar, porque na verdade nada de novo aparecia para mim. Um detalhe que esqueci de acrescentar, no começo: desde pequena eu sonhava um dia ser motorista e dirigir um
ônibus e, no pensar de criança, achava que seria muito fácil e que eu chegaria a tanto. Mas nunca falei nada a ninguém, e naquela época (*) N.A. Naquele tempo era hábito que a herança paterna passasse automaticamente para o filho ou filha que ainda estivesse solteiro(a) e que tomasse conta dos pais. Com a entrada do cunhado como arrimo da família, quebrou-se esse direito. Especialmente levando-se em conta que eu não poderia prover o sustento de meus pais. em que estava atravessando maus momentos, mais do que nunca pensei em aprender a dirigir. Dinheiro de onde?, pensava comigo mesma. Não!, desista, Cecília e desça das nuvens em que estás voando, porque se caíres o tombo vai ser grande, e conseqüências
piores te abraçarão. Nos meus pensamentos desisti, mas não esqueci. No dia 21 de novembro de 1975 tirei minha primeira habilitação como motorista. E o provérbio badalava na minha cabeça: "Quem nasce para 10 réis não chega a vintém". Uma noite tive um sonho, embora deva ressaltar que nunca acreditei em sonhos, "sortista" ou outra coisa parecida. Mas aquele, confesso que me impressionou. Eu, que costumava, e faço até hoje, sempre contar o que sonho, no entanto aquele não contei a ninguém. Guardei como se fosse coisa só minha. Era o seguinte: parecia ser um dia chuvoso e eis que, de repente, pára um carro em frente ao portão, e dele sai um casal muito simpático e queriam me levar para trabalhar em sua casa. Me chamaram: "ei, moça, vem cá". Eu comecei a andar mas o caminho estava cheio de espinhos, ou seriam pregos, não sei, só sei que a mulher dizia "venha depressa", e eu dizia "não dá, o caminho está cheio de espinhos"... Por fim, cheguei perto dela, que me estendia as mãos amavelmente e dizia: "a gente sempre deve andar calçada, então pode andar mais depressa". E nisto olhei para os meus pés e vi que estava descalça, aí eu disse: "os
espinhos furaram meus sapatos". Comecei a rir e então acordei. No outro dia, pela manhã, apareceu uma mulher e me contratou para trabalhar como doméstica em casa de seu primo, em Joinville. Essa senhora se chamava Herta Marquardt. Logo me lembrei do
sonho que tive e pensei: "aqueles espinhos? será que tem alguma coisa a ver com este emprego?" Por outro lado, pensava: "puxa, não pode ser, pois aquilo foi só um sonho, nada mais que um sonho", e disse-me a dona Herta que iria a Joinville trabalhar na casa do tio ou do primo, eu podia escolher. Passados cinco dias, lá estava o casal com um carro, tal e qual eu havia sonhado, só que não me chamaram e, sim, vieram até onde eu estava. Que gente bacana, uma senhora amável e muito carinhosa dizendo que, por se tratar de um casal de velhinhos, e tendo eles uma nora que procurava empregada, eu podia escolher, ficar com os vovôs ou com a nora. Lá chegando (aliás, parti com eles no mesmo dia), vi três crianças muito lindas à espera da vovó, então o mais velho, que tinha sete anos, perguntou para a mãe: "Mamãe, essa moça vai ser
nossa?" Então, ela respondeu: "se ela quiser, sim, meu filho". Olhei para a vovó, que havia me buscado, e disse: "a senhora me desculpe, mas prefiro ficar com as crianças, porque gosto muito delas". A vovó me abraçou e me beijou e disse: "você é a primeira empregada que diz isto", e disse em alemão: Du bist sehr lieb (Você é muito querida). Coube a mim começar vida nova ao lado daqueles pessoas, que demonstravam ser muito boas. Eu, por minha vez, também aprendi a gostar delas. Quando a gente tem algo que, de uma ou outra forma, nos é bom, luta para não perder; se não se tem ainda, luta-se para conseguir; se a gente tem e perde, luta-se então para reconquistar. Tudo isto aconteceu comigo, sabe? Estava então com bom emprego,
certo; mas meu querido pai já estava muito doente. Por outro lado, lutava para alcançar a meta principal, isto é, um casamento, pois perdendo papai, eu sabia que também perderia o meu lar. Então eu pergunto, será que existe destino? Eu não sei, mas se o destino marca algo, até que o meu não foi tão amargo e rude, eu o aceitei assim como apareceu. Se Deus é tão bom quanto acreditamos que seja, nunca deixaria acontecer algo de ruim numa igreja, numa procissão ou numa missa. Portanto, o que aconteceu comigo daqui por diante foi chato, sim, muito chato, mas foi também maravilhoso, foi bom demais, foi algo assim que só Deus podia me dar.

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