quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

A vida

Eu gostaria de escrever algo sobre a vida, ou sobre o ser humano, talvez seja este o meu maior desejo, mas os outros afazeres não mo permitem. A vida é isso aí, todos no meu ponto de vista deveriam fazer aquilo que realmente gostam, mas para viver há necessidade de nos alimentar, vestir, estudar. Ter uma profissão é o ideal de certas pessoas, mas não lhes dê talvez uma renda suficiente para isto, então recorrem a outros trabalhos. Esses trabalhos lhes roubam parte do tempo necessário para satisfazerem o seu ideal, e levam a vida toda fazendo aquilo que não haviam escolhido, mas a vida é isso aí, estamos vivos e queremos continuar vivendo. A vida precisa de amor. Ele existe, ele é e deve ser cultivado. Muitas pessoas casam porque os pais assim o querem e, portanto, sem amor. Mas eles não pensam que depois do casamento a vida continua, e o mesmo sendo frustrado, a vida será uma eterna frustração, daí que sequer amar a pessoa certa lhes foi permitido. Mas a vida é isto, puxa e empurra para ver se engrena. O segredo da vida conjugal é uma arte. A vida de muita gente vale às vezes por uma noite, portanto viva intensamente o momento
que serás feliz. A vida nos promete muito quando nós nascemos, mas também exige muito para continuarmos a viver. Todo o ser humano tem um pouco de alpinista, sim, porque nos defrontamos com morros, serras, montanhas: são obstáculos que só um bom alpinista consegue subir até o topo! Daí, portanto, que grande parte dos seres humanos do mundo nadam com muito esforço e grande sacrifico para não naufragar.
Mas a vida é isso aí, sorrindo, chorando, crendo e descrendo, rezando, sonhando, acordando e trabalhando, vencendo e perdendo, mas vivendo... Eu podia escrever um livro sobre a minha vida, porque a vida é um livro... "aberto para uns e fechado para outros". Esperando que outros façam mais do que eu, mesmo assim me contento com aquilo que fiz, e nunca hei de me arrepender pelo que fiz, porque o fiz de boa vontade.

(22.10.1974)

A você que é humano

Você, que acorda pela manhã com a cabeça cheia de idéias maravilhosas. Você que acorda de um sonho fantástico e quer realizá-lo a todo custo, mesmo sendo impossível.
Você que olha ao redor e vê tanta coisa linda: praias, mares, campos, matas, cidades e grandes edifícios. Deus fez tudo tão bonito, e ainda tem gente que não entende que
tudo isto Deus nos deu de graça, só para nós conservá-los, e acima de tudo amá-los e respeitá-los. Cedo pela manhã resolvi dar um passeio. Mas aonde? Ah!, já sei, resolvi passear pelo jardim da praça. Grande foi minha surpresa ao ver a Sempre Viva morta. Uma cobra morrera da mordida de outra cobra. O rio, mesmo dizendo ter muita raiva do mar, acabou correndo para ele. Um cão morto de raiva de outro cão. Então, resolvi voltar para casa e pensei bem, eles são irracionais, mas e o homem, que sabe que não deve fazer essas barbáries? É isto que eu gostaria que a humanidade entendesse: cuidar do que é nosso para termos uma vida mais saudável e alegre, podendo compartilhar de todas essas maravilhas que Deus nos deu de graça.

(21.11.1984)

O castelo de sonhos

Nasci numa casa modesta do interior e o meu primeiro choro foi um sinal de participação com o mundo. Contente por estar viva, sem saber o que seria a vida,
participando de uma maneira meiga e pura como toda a criança quando nasce, mas sem saber qual será a participação. Mas com pouca idade já comecei a sonhar com coisas impossíveis. Sonhei que vi um mosquito de smoking na praia, sentado palitando os dentes; sonhei com um cachorrinho latindo e rosnando com uma vontade louca de abanar a cauda e esta ele não possuía. Vi um ratinho correndo loucamente atrás do gato e o gato gritava: me deixa em paz, eu vou repartir o queijo. Quer dizer, ninguém dizia para mim que isto seria impossível. Também ninguém sabia o que se passava pela minha cabeça. Cresci com muito pouco de acréscimo de aprendizagem ou conhecimento. Pouca escola, muito trabalho, muita luta e acima de tudo muitos sonhos. Aos domingos me juntava com uma turma de meninas, e cada qual com sua boneca de pano, lá íamos nós fazer nossas casinhas entre as pedras, sempre de duas em duas. Para mim, aquilo era um castelo, depois de tudo pronto eu olhava ao redor e perguntava para as meninas, vocês acham que não falta nada? Aquilo tudo era para mim um castelo real, não de sonhos, mas faltava o príncipe e isto me preocupava. Comecei desde então a procurá-lo e não o encontrei até hoje. Quando encontro alguém que poderia ser algo assim como eu desejo, falta-me força para segurá-lo, é como se minhas mãos ficassem com os músculos enfraquecidos e daí não consigo segurar. Vejo então e compreendo que minhas mãos só servem para dar um aceno de adeus. Eu queria ter a astúcia da raposa, a força de um leão, a beleza de um cisne, o encanto de uma cascata, ou mesmo a alegria de um tordo pardo, que vive a cantar. Tudo isso eu poderia possuir, mas morreu há muito tempo e foi enterrado junto com o castelo, ao lado do meu sonhado príncipe.
Este sonho durou até os 18 anos, daí acordei e vi que meu sonho tinha ido por água abaixo.

(30.6.1976)

Delícia sem fim

De onde vim e para onde vou, isto não importa, porque minha vida é uma doçura deliciosa, eu nunca deixo o amargor tomar conta dela. A noite, sento-me à relva e fico observando as estrelas, e me pergunto: Quantas são e qual é o significado de cada uma? Sentome na praia e deixo o mar molhar levemente meus pés, e é como se
os estivesse beijando. Eu sou feliz porque não faço mal a ninguém, gosto de tudo e de todos, se alguém quisesse ser meu inimigo, por qualquer motivo, então eu diria: Nada disso, então não vê que somos todos irmãos? Que tudo tem um começo e um fim, e que nós somos como os rios, que acabam no oceano, por menos que gostem dele? Esqueça portanto tudo o que é ruim e venha comigo sorrir, me dê a tua mão e gozemos as delícias da vida juntos. Gosto do sorriso de uma criança e dou, aos velhos, carinhos com esperanças. No meu mundo não há dias cinzentos, porque os pinto todos de azul. As
barreiras que se erguem à minha frente eu as transponho cantando, qual ave que se alegra pelo seu ninho, sem que coisas ruins a perturbe. O mundo é tão grande e nós, sendo tão pequenos, cabemos nele sem ódio, nem rancor, mas com uma alegria imensa de viver. Venha ver-me e conversar comigo quando estiveres triste, e eu te ajudarei com uma palavra amiga. Se estiveres alegre, venha procurar-me, para que eu possa participar da tua alegria e juntos iremos procurar quem precise de carinho, compreensão e afeto, e assim fazendo temos certeza que estamos aproveitando ao máximo
aquilo que é tão importante, que é viver.

(2.9.1975)

Medo de amar

Porque ter medo de amar? Esta pergunta cala fundo em minhalma, e fico sem poder falar, pensando o que é o amor, o que ele faz. O tempo passa, o ontem, o hoje, e assim virá o amanhã, então deixe meu coração falar. O amor ataca os fracos de surpresa, sem dar-lhes tempo para pensar, ele cria independência e ansiedade, provoca revoluções e guerras, mas também traz paz e harmonia. O que significa o ontem e o amanhã? Não deviam significar nada, e só o hoje devia ser levado em conta, mas eis aí o medo de amar. Nós deveríamos viver só o hoje, o agora, neste momento, com o céu azul todo bordado de estrelas, e a lua cheia olhando para os amantes como quem diz: Vivam intensamente este momento de amor, e não deixem que o dia de amanhã, talvez traídos, vos venha perturbar, portanto não tenham medo de amar. Eu amo, amo muito aquilo que não devo, mas não tenho medo porque o meu coração não me trai, nem me engana. Às vezes sou rude e egoísta, mas para o amor sou sempre meiga e pura como uma rosa. Digo palavras bonitas e até mesmo frases, mas elas não bastam, não satisfazem, e às vezes são até enganosas, mas o que está dentro de mim não são apenas palavras ou apelos, e sim amor, um amor tão grande que eu diria do tamanho do universo. Só meu coração e eu sabemos quanto amamos sem medo.

(19.4.1975)

Declaração

Um dia conto, conto sim,
A todos o que você sente por mim,
Mas também direi, pois você merece,
O que sente por ti esta que não te esquece.
Um dia conto, conto sim,
Tudo o que vai dentro de mim,
Todas as lágrimas que derramei,
Porque te amo muito e sempre te amarei.
Um dia eu conto, conto sim,
Você não acredita, é uma pena,
Bendita é a verdade, vai por mim,
Que esta vida, meu bem, não é apenas terrena.
Eles não querem que nós nos amemos,
Esta é que é a verdade,
Por isto todos nos agridem,
Mas vão pagar o preço da maldade.
Subo colinas, montes e vales
Só para colher uma flor,
E com toda a sinceridade
Entregá-la a ti, meu grande amor.
Minha casa é uma armadilha,
Coberta de material muito frio,
De onde procuro o amor desesperadamente
E não encontro porque nunca existiu.

(29.6.1976)

A volta dos que não foram

Eu gostaria tanto de ter ido para poder voltar. E tantos anos se passaram e eu continuo voltando, sem nunca ter ido. Você está vendo aquele rio? Lá já me banhei muitas vezes. Aquele campo verde? Muitas vezes lá passeei. Meu amor, como eu adoro a vida, é um sobe e desce, vai e vem, segura e solta, ama e desama, quer e não quer, vai e não volta ou volta sem ter ido...

(18.6.1982)

Meu sonho de menina

Fui uma menina igual a tantas outras da minha idade, senti desejos, fome, saudade, alegria, paixão, sede, inveja, raiva, pena, frio e calor, puxa, será que senti mais alguma coisa? Ah!, sim, acima de tudo eu sempre tive muito amor por tudo e por todos. Mas uma coisa me marcou muito, quandoeu devia ter assim uns nove, quase dez anos de idade. Freqüentava a escola do meu bairro, estudava na parte da manhã e à tarde cuidava das crianças de uma irmã, que era nossa vizinha, para ela poder trabalhar na roça. Vim de uma família pobre ou remediada, como queiram, só que nunca pude ter o que eu queria, ou seja, uma boneca bem grande, que fosse do tamanho de
um bebê recém-nascido, era um sonho meu que nunca se realizou. (Obs.: Talvez, se alguém for ler um dia isto que estou escrevendo, vão dizer mas porque só falo na minha vida e da minha família? Pois foi essa a família que eu tive e que conheço muito bem, por isso posso escrever algo sobre ela sem erro, ou mentira, é portanto uma história verídica e a mim só interessam as coisas verdadeiras, só por isso resolvi escrever.) Na época eu sonhava muito. Claro que uma menina como eu sonhava com uma vida melhor, ou até talvez de ficar rica, sei lá, era um direito que eu tinha. Mas como em todas as pessoas sempre fica alguma coisa que marca, eu também passei por isto. Um dia, de volta da escola, deparei com uma cena muito triste, a morte de um sobrinho recém-nascido, filho de minha irmã Clara, sendo que ela teve gêmeos, a menina estava viva e se chama Dirce, e o menino, que ia se chamar Luiz, infelizmente havia falecido logo após ter nascido. Resta saber que minha irmã estava na casa de meus pais, para minha mãe poder tomar conta dela até que passasse o tempo do resguardo. Então, quando voltei da escola, na minha santa inocência vi aquele
anjinho morto na nossa sala, dentro de um caixão que mais parecia uma caixa de sapatos. A partir daí não quis mais saber de boneca, pois via nela o nenê morto. Chorei muito, muito mesmo. Depois aconteceu o enterro e a volta para casa que, apesar de tudo, ainda tinha a menina, que estava linda e viva, aliás, ainda está linda e viva. É professora aposentada, com uma inteligência fora de série. Minha sobrinha do coração, que hoje está com 58 anos e sempre foi e sempre será minha sobrinha querida e grande amiga, apesar dos meus 67 anos. Isto é um pequeno resumo de minha vida.

(28.6.2000)

Grande demais

A minha história tem uma moral, mas o que é a moral? É grande demais para se saber, para se entender. A minha história é feita com muita força de vontade, mas o que é
força de vontade? Está fora da minha capacidade mental para saber, porque é grande demais. Tudo o que eu escrevo e faço é feito com muito amor, mas o que é o amor? Será que também é grande demais para se entendê-lo? Tudo é tão grande e eu aqui pequena, tão pequena, quase destruída, reduzida em nada perto de tudo; embora
eu às vezes veja pequeninas coisas, reconheço que são grandes demais para eu dialogar sobre elas. Eu queria escrever sobre as baleias, os tubarões, até sobre as
pequenas sardinhas, mas são grandes demais para eu descrevê-las. O meu coração é pequeno no tamanho, eu sei, pois está aqui no meu peito e são os outros que o julgam quão grande ele é. Eu gostaria de escrever sobre a pulga, mas ela é grande demais, e quem sou eu para descrevê-la? Ah! Quem me dera chegar lá, digo isto porque realmente sinto não poder fazê-lo, para poder escrever tudo o que sinto, tudo o que acho, tudo o que sei sobre essas pequenas coisas grandes. Mas deixo uma sementinha gerada por mim, com amor terrivelmente grande!... E o que foi grande demais para mim você poderá fazê-lo

(15.8.1974)

Nascer

Cecília Zatelli, este é o meu nome, que por força do destino nem com o casamento mudou, porque não houve cerimônia civil. Nove horas da manhã do dia 24 de setembro do ano 1932, manhã de primavera cheia de sol, nascia uma menina, a de número 13
de uma família muito pobre. Veio fazer companhia às nove irmãs e três irmãos. Peço licença ao leitor para escrever os nomes dos que compõem minha família:
Papai: Giacinto Zatelli;
Mamãe: Maria Kretzer Zatelli;
Filhos: Conceta, casada com Giacinto Dalpiaz (* irmãos);
Egília, casada com Arcângelo Dalpiaz (* irmãos);
Letícia, casada com Quiliano Purim;
Cirilo, casado com Alida Odorici;
Maria, casada com Vitório Pedron;
Ferdinando, casado com Elza Cristofolini;
Olímpia, casada com Silvério Matedi;
Nicolau Kretzer, casado com Elza Marquardt.
Clara, casada com Arthur Taffner;
Ana, casada com João Leithold;
Catarina (** gêmeas), casada com Alois Schmidt;
Olinda (** gêmeas), casada com Ludovico Holler;
Cecília, vivendo maritalmente com Theobaldo Hagedorn.
Nomes em negrito: irmãs e irmãos por parte de pai.
Nome em italic: irmão por parte de mãe.
Os demais são filhos comuns do casal.
Meu pai, Giacinto Zatelli, veio da Itália, da cidadezinha de Matarello, junto com os pais dele, Andrea Zatelli e Ana Toller Zatelli. Chegou no Brasil ainda criança. Como imigrantes, desbravaram as terras para plantar milho, arroz irrigado e principalmente aipim, que era meramente para o próprio sustento. Meus avós tiveram sete filhos, porém dois morreram ainda pequenos e sobre eles nada sei. Cinco se criaram e tiveram suas famílias: José, Giacinto (meu pai), Valente, Affonso e Alberto. Não tiveram sequer uma filha. Adulto, meu pai se casou com Aurélia Perini, com a qual teve sete filhos, sendo cinco mulheres (Egília, Conceta, Letícia, Maria e
Olímpia) e dois homens (Cirilo e Ferdinando). Meu pai instalou-se num pequeno povoado chamado Encruzilhada (Crozzara), porque bem no centro do lugar havia o cruzamento entre duas ruas, em Pomeranos Central, que mais tarde passou a se chamar Arrozeiras, já que arroz era o principal produto dos imigrantes: finalmente o local
recebeu o nome de Rio dos Cedros (porque tinha muitos rios bem bonitos com águas muito limpas e era rico em árvores chamadas cedro), passando a ser distrito do município de Timbó. Aliás, dali se extraia a madeira para as construções. Todo o corte era feito à base de machado, já que ainda não existiam serrarias, como hoje. A
mulher de meu pai faleceu quando deu à luz o oitavo filho, que levou com ela.
Minha mãe também era viúva, eu nunca soube o nome do marido dela, porém tinha um filho, Nicolau. Então meu pai e minha mãe, viúvos, se encontraram e casaram e dessa união nasceram mais cinco filhas (Clara, Ana, Olinda e Catarina - gêmeas - e eu). Meu pai tinha uma pequena ferraria onde fazia foices, enxadas, machados e o
famoso ferro de cortar arroz, que os italianos chamavam de zerla. Ele ainda limpava as patas (os cascos) dos cavalos e as ferrava, colocando as ferraduras para que o animal não machucasse as patas no serviço. Eu ajudava o pai a puxar um fole, que ateava o fogo para esquentar o ferro, deixando-o maleável para depois malhar. Esse fole era conhecido como montex, que nós crianças chamávamos de "tom bededec", porque era esse o barulho que ele fazia quando a gente puxava a alavanca. Ele fez parte da Segunda Banda Musical do Rio dos Cedros em 1914, tocando clarineta, seu instrumento preferido. Meus avós maternos eram José Kretzer e Clara Weizer. Ambos foram criados em Salto Weizbach, próximo a Blumenau, onde se casaram e tiveram cinco filhos, sendo quatro homens (Francisco, José, Arthur e Ricardo) e uma mulher, Maria, minha mãe. Também trabalhavam na lavoura e tiveram um pequeno engenho de farinha, faziam fubá de milho e ainda o tradicional mus, doce feito com garapa de cana, laranja ou tangerina. E eram muito felizes. Quando moça minha mãe casou-se e ficou viúva antes mesmo de nascer seu primeiro filho. Sei ainda que meu avô era filho de imigrantes que chegaram no Brasil por São Pedro de Alcântara, SC em meados do século XIX.
Encontrei em registros de Imigração um Franz Krätzer (*1795), casado com Anna Maria Gansen (*1799) na Alemanha, onde tiveram vários filhos, que imigrou para aquela localidade em 1841, porém não sei se são meus parentes. Uma vida aconteceu num lugarejo chamado Encruzilhada, município de Timbó, distrito de Arrozeiras, em Santa Catarina, Brasil. Essa criança sou eu, que depois de muitos anos resolvi escrever algo sobre minha vida, porque acho necessário lembrar o passado e só deixá-lo morrer comigo. Minha vida de criança transcorreu normalmente, como a de todas as crianças daquela redondeza, pobres porém felizes. Aos sete anos fui matriculada na escola local, chamada Escola Mista Estadual de Pomeranos Central. Sempre fui a primeira da classe, menos em um ano, quando toda a classe "rodou" por falta de professores, havendo poucos dias de aula durante todo o ano. Este foi o meu primeiro fracasso, fiquei muito triste. No caminho da escola eu gostava de brigar com os colegas,
nunca levei desaforo para casa. Junto à professora eu sempre dava um jeitinho de ser a vítima e a culpa caía sobre as outras meninas; por isso era chamada de "a protegida da mestra". Minhas professoras foram dona Ema Sampaio Rosa, dona Célia Ambrósio Soares e dona Isolete Mafra. A de quem eu mais gostei foi a dona Ema, que era casada com Antônio Rosa. Um velhote, chamado Victor Manoel Schneider, era
empregado deles. (O "seu” Victor, aproximadamente 30 anos após, já casado com dona Margarida de Souza - dona Lica -, acabou sendo inquilino nosso - meu e de meu marido - na casa onde hoje funciona o 507 Atelier de Cerâmica, na rua Venâncio da Silva Porto, 507. Ele morreu pelos idos de 80, com 82 anos.) Dona Ema e “seu” Antônio não tinham filhos, mas adotaram um menino. Eu gostava muito dele. Seu
nome era João, era negro, aliás, o único negro de toda a região, já que aquela era uma vila só de italianos, e toda a sala de aula gostava dele porque era diferente de nós e de tudo o que tínhamos visto. Aos oito anos eu ajudava a dar aula, quando a mestra se encontrava doente (1). Estudava pela manhã e, à tarde, trabalhava na casa de minha irmã Olímpia, cuidando das crianças dela. Foi lá que comecei a enfrentar a vida, sentir saudade de tudo e de todos da família, pois muito pouco eu ficava em casa e, quando estava, à noite, tinha que fazer minhas lições de aula. No fim desse mesmo ano tomei >(1) Ajudar a mestra a dar aulas significava tomar as lições dos colegas, passar no quadronegro os deveres para o dia seguinte e recolher os cadernos para correção, que era feita pela professora. Além disso, integrava o chamado Pelotão de Saúde, fazendo pequenos curativos quando necessário.>a Primeira Comunhão e não pude comprar o retrato de lembrança porque nem papai, nem minha irmã, onde eu trabalhava, se lembraram de dar dinheiro para que eu pudesse comprá-lo: essa foi minha segunda desilusão. Levando uma vida normal fui crescendo, conclui o curso primário e fim das aulas, pois não podia continuar por falta de recursos. Assim, passei a me dedicar aos serviços da roça, principalmente lidar com cavalos, carroças e zorras (2). Apanhava trato para o gado e às vezes tombava a zorra: se não quebrasse tudo, recolocava no caminho e tocava adiante. Tinha dias em que ainda cuidava das crianças: aliás, esse era o meu fraco. Apanhava delas e não reagia nunca, tanto que numa ocasião um filho de minha prima, que tinha apenas dois anos, quase me cegou, batendo na minha vista com um pau. Então a mãe do menino quis surrá-lo. Eu interferi e disse que a criança não teve culpa, pois eu poderia ter tirado o pau da mão dele antes que isto viesse a acontecer. Daquele dia em diante passei a ajudar só minhas irmãs, a Clara e a Olímpia, que eram as que tinham crianças, e não fui mais na casa de minha prima, porque mamãe não deixou. A minha juventude foi muito feliz, digo feliz porque sempre tive saúde. Quanto ao trabalho, bem, eu trabalhei muito, mas isso não me fazia infeliz, muito pelo contrário, me enriqueceu a alma e me fez sentir um ser humano normal. Fui uma moça como outra qualquer: amei, chorei, rezei, dancei, passeei, briguei, senti muito saudade e muita fome, também. Às vezes sentia-me desprezada por todos. Só quem sempre me amou realmente e me entendia, inclusive me ajudando muito e levando muitos segredos meus para o túmulo (e tenho muito respeito por eles, porque também irão para o túmulo
comigo) foi minha mãe, que indiscutivelmente foi também minha melhor amiga. Mãe que até hoje admiro, embora não esteja mais entre nós. Além de mãe, carinhosa e grande amiga, também foi minha confidente. Que Deus a tenha perto de si e, se não for pedir muito, reserve um lugarzinho para mim também. (2) Zorra - Slita / Schliten espécie de carro puxado a bois ou a cavalos, sem rodas, como um trenó, suportado por dois pedaços longitudinais de caibros, próprio para o transporte de produtos da roça até os ranchos próximos da casa. Era muito útil especialmente em terrenos muito dobrados. Corria o ano de 1946. Ao completar 13 anos minha casa já estava reduzida a quatro filhos e os pais, pois o restante havia casado e constituído o próprio lar. Meus pais venderam a propriedade que tinham em Pomeranos Central e mudamos para o interior de Jaraguá do Sul, num lugar chamado Alto Garibaldi (São Pedro). Era um lugar muito pobre, viviam ali descendentes de imigrantes, poloneses em maior número, mas também tinha descendentes de italianos e
alemães. Então meu pai já não trabalhava mais como ferreiro e era agricultor. Minha mãe tocava a atafona (3) de fubá de milho. Era muito bom, só que tudo muito longe do comércio, da farmácia, enfim, de tudo. Por nosso terreno cruzavam dois riachos. O que passava na frente de casa movia a enorme roda d'água, que movimentava a atafona, e no dos fundos eu sempre ia pescar, já que tinha muitos
peixes e a água era muito limpa. Os peixes eram uma delícia. As quatro filhas solteiras - Ana, Catarina, Olinda e eu - também trabalhavam na roça, mas por pouco tempo, já que logo depois fomos uma a uma saindo em busca de emprego em casas de família. Algum tempo depois casariam a Ana, a Catarina e a Olinda. Eu continuei no meu emprego. Os colonos trabalhavam na roça plantando milho, arroz, tabaco, taiá japão, aipim e batata doce. A única coisa que vendiam mesmo era o tabaco, o resto ficava para o povo comer, e tratavam os porcos, as galinhas e o gado também com a sobra desses alimentos. Daí vendiam o leite e quando tinham algum porco sobrando, que não precisassem abater para o sustento, também era vendido para arrecadar um dinheiro para os impostos e roupa, remédio e ainda alimentos que não se colhiam na roça. Meus pais tinham um moinho para fazer fubá e isso rendia um pouco mais para eles, mas mesmo assim nós ficamos pouco tempo morando lá, nós não nos acostumávamos com o tipo de vida que as pessoas tinham. Uma ocasião, o meu pai foi a cavalo, que era a única condução que por lá existia, para onde nós morávamos antes, resolver uns
problemas e, na volta, uma trovoada o surpreendeu e ele parou numa casa que ficava na serra, antes de chegar na nossa casa, e lá ofereceram café, porque era tudo gente conhecida, eles se chamavam (3) Atafona - Moinho manual ou movido por cavalgaduras; moinho de colonos movidos à roda d'água, para beneficiamento de grãos.Biernascki, eram poloneses. Meu pai pensou que era banana frita que serviram com o café, então a mulher disse: "não, seu Giacinto, são lesmas do xuxuzal"... Meu pai, gentilmente, agradeceu e disse que não estava com fome, só ia tomar um café. Quando a chuva passou ele foi para casa, e contou para a minha mãe que "esse povo come as lesmas do xuxuzal", que aliás nós conhecíamos, e por sinal eram muito nojentas: quando a gente tocava nelas expeliam um leite e nós achávamos que era veneno. Ah!, que lugarzinho chato, aquele! Nós sentíamos tanta saudade da terrinha que havia ficado para trás e que não tinha volta... Sair de um lugar civilizado para morar no meio do mato, no meio de gente rude, analfabeta, suja e, acima de tudo, muito briguenta... A saudade apertando e nós, uma a uma, nos dispersando. O moinho foi vendido alguns anos depois para Artur Fachini, que
morava no rio Sapo, entre o rio Ada e o rio dos Cedros. O tempo passou e nós fomos deixando a casa dos pais para trabalhar na cidade, como empregadas domésticas. Saímos de casa as três irmãs: Ana, Catarina e eu, Cecília. Nós fomos trabalhar em
Jaraguá do Sul. A Ana se empregou na casa do senhor Romeu Bastos e dona Helga Fiedler Bastos. Eu tinha então 15 anos e fui trabalhar de camareira e lavadeira num estabelecimento chamado Hotel Cruzeiro, que ficava na rua Marechal Deodoro da Fonseca. Era um hotel de caminhoneiros. A maior parte deles vinha do Rio Grande do Sul. Havia também alguns tropeiros que vinham pegar o gado na Estação Ferroviária e iam levando a tropa até Timbó, Indaial e Blumenau. Lembro do nome de dois deles: um se chamava Wili Winckelhaus, o outro era conhecido como Früstick (4) e era um caboclo. Uma vez trouxeram a tropa pela rua Marechal Deodoro da Fonseca (o hotel
estava localizado justamente nessa rua, esquina com a rua Cabo Harry Hadlich) e um boi entrou pela porta da frente do hotel e saiu pelos fundos, nós quase morremos de susto, pois o animal estava bravo e teve que ser abatido ali mesmo: ele estava desgarrado da tropa. Lá batalhei, ralei bastante, levantava às 4 horas da madrugada mas ia dormir só entre as 24 horas e uma e meia, até que o serviço acabasse. Os patrões eram tão gananciosos que tínhamos que comer comida quase estragada, para não jogar fora. (4) "Früstick" - Apelido que o caboclo ganhou porque todos os dias em que chegavam no Hotel, o Winckelhauss irrompia pela porta da cozinha pedindo pelo café da manhã: früstick. Como o caboclo não falasse alemão, quando ele chegava no hotel sozinho repetia a única palavra que aprendera: früstick. naturalmente era atendido. E a palavra virou seu apelido, a partir de então. A outra minha irmã, a Catarina, não veio até a cidade, empregou-se na casa do casal Peters. Eles tinham comércio em Garibaldi, na entrada de Jaraguazinho, na antiga propriedade do senhor Walter Marquardt (atual Pesque-Pague Garibaldi). Suas duas filhas, a Terezinha e a Iracema, foram muito amigas de minha irmã: quando minha irmã casou a primeira filha se chamou Iracema e a segunda Teresa, homenagem às filhas dos patrões.
Eu, ovelhinha caçula de casa, trabalhando no hotel. Era um lugar onde vinha gente de toda a espécie e os patrões, embora muito ranzinzas e chatos, eu gostava deles. Eram o senhor Oscar Röeiter e sua esposa, dona Rosa. Tinham um filhinho de quatro meses, chamado Randolf, ao qual me apeguei como se fosse meu irmãozinho. Talvez, a
exemplo desse menino, eu tenha criado mais tarde meu próprio filho, isto é, como se fosse a jóia mais cara do mundo, que aliás meu filho para mim é tudo o que tenho de bom neste mundo. E foi ali, nesse emprego, que conheci um rapaz, sobrinho do patrão. Começamos a namorar, o nome dele era Felix Röiter. Mas a diferença entre nós era
muito grande. Ele era filho de gente rica, enquanto eu não passava de uma empregada e de religião oposta a dele. Eu era católica, ele era luterano (*). Por isso os tios dele não consentiam no nosso namoro. Mesmo assim passamos algum tempo flertando, aproveitando quando os tios não viam e começávamos assim, meio escondidos. Mas eu não
continuei com esse namoro porque não era nosso costume namorar escondido. Eu era tola naquele tempo, mas pensei bem e achei que o amor é a coisa mais linda para os jovens, e um namoro escondido não poderia ser sincero: embora eu gostasse muito do rapaz, procurei me afastar dele. Um casal de Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul, observando o carinho e a paciência que eu tinha para com o filho dos patrões, chegou
a querer me levar com eles, só para tomar conta das crianças, porque eles sempre viajavam e me conheceram no hotel, onde eles se hospedavam. Os nomes deles eram senhor Valdemar e dona Maria da Silva. Os meus patrões não sabiam que esse casal queria que eu fosse com eles, e talvez com mais um pouco de insistência eu os
acompanhasse, mas Deus me deu um aviso. (*) N.A. - Nessa época, e até a década de 60, havia muitas dificuldades em conciliar ambas as religiões, especialmente para casamentos. É muito feio, eu sabia, mas a tentação me fez por as mãos nos documentos que estavam sobre a mesa do dormitório do casal, a mesa lavanderia (5).Sendo camareira e arrumadeira, eu entrara no dormitório para arrumar as camas. Não raro sobrava para mim também esvaziar os penicos, que ficavam sob as camas. Ao ver os documentos percebi que eram diferentes um do outro: a dona Maria, que parecia tão honesta, era casada com outro homem. E ele, da mesma forma, já havia dado seu nome a outra mulher. Daí tirei minhas conclusões e achei que seria melhor ficar nessa ratoeira do que embarcar numa canoa furada. Quando uma pessoa, seja moça ou rapaz, atinge os 17 anos, começa a sofrer por qualquer coisa que seja. Eu fui uma moça que sofri por tudo: por desilusão, por amor, por raiva, por paixão ou pena. Por desespero, por alguma grande alegria, enfim, tudo me fazia chorar com facilidade. Quando eu recebia uma carta de meus pais, parentes ou amigos, eu chorava de saudade, de alegria, de tristeza, sei lá, eu era uma chorona. Mas no fundo, no fundo, eu tinha e tenho um grande coração.
Outros moços quiseram namorar comigo, mas eu tinha medo que alguém nos contrariasse, ou que talvez eu não conseguisse gostar o suficiente para fazê-lo feliz ou, da mesma forma, me sentir feliz. O tempo passou e, após quatro anos trabalhando nesse hotel,
quis variar um pouco e passei para outro hotel, em outra cidade, chamada Pomerode. E o hotel também se chamava Hotel Pomerode, e pertencia a família de dona Elsa Haass e seu esposo. Lá não fui camareira nem arrumadeira, e sim garçonete no restaurante anexo, mas foi ali que comecei a pagar os pecados que havia cometido até então. Aquilo era um inferno na Terra, não pelo serviço, mas pela caretice dos patrões e, muito em especial, do filho do patrão. Levantava às quatro e meia da manhã para atender ao movimento do primeiro ônibus. Cabe salientar que o local era ponto
de ônibus, além de hotel e restaurante. Pois bem, como já disse, levantava às quatro e meia da manhã para atender ao primeiro ônibus, que era da Auto Viação Catarinense e chegava às cinco, às seis chegava o ônibus da Transportadora Penha, às sete chegavam dois ônibus da Andorinha. (5) Mesa lavanderia é mesa com bacia, que substituía a pia em hotéis e residências antigas. E assim era o dia todo, até as dez horas da noite, um corre-corre terrível. E quando a gente errava ao abrir uma garrafa de qualquer bebida, era descontado no salário do fim do mês; se quebrasse uma xícara ou um copo era a mesma coisa, fim de mês vencimento mais
curto. Como se isto não bastasse, duas das empregadas eram redondamente quadradas. Elas perseguiam a mim e mais outra como se fôssemos escravas. Pela Páscoa elas ganharam muitos presentes: chocolates, vestidos, aventais, inclusive jogos de louça, enquanto eu e a outra ganhamos um saquinho de pipocas. Disseram que não podiam dar mais presentes porque fazia pouco tempo que ali estávamos prestando serviços. Eu era muito boa mas não dava o outro lado da face para esbofetearam, que isto já era, morou? Peguei o saco de pipoca e simplesmente joguei pela janela, no outro dia pedi minha conta e fim de papo. Voltei novamente a Jaraguá do Sul e me empreguei no mesmo hotel de antes. Mas nesse meio tempo meus pais haviam vendido novamente a propriedade em Alto Garibaldi e foram morar num lugar chamado Barra do Rio Cerro. As minhas irmãs já estavam todas casadas. Aconteceu que eu sempre repartia o salário com meus pais, para ajudá-los. Meu cunhado pediu-me que voltasse para casa e cuidasse
de meus pais, já que estavam sozinhos, mas em casa não ganharia o suficiente para o nosso sustento, pois o terreno ali era pequeno. Como deveria agir? Então eu fiz a proposta: Continuaria no emprego e daria o dinheiro para os meus pais, mas essas condições não atendiam a situação, pois meus pais precisavam de alguém junto deles para ajudálos. Eu não ficando em casa, automaticamente aquilo que era meu, que
de direito me pertencia, iria para meu cunhado, então o arrimo de família. Embora minha vida tenha sido um verdadeiro Calvário e levei anos para chegar ao cimo, já que comecei do zero. Não guardo meu mágoa contra meu cunhado ou minha irmã, muito pelo contrário, adoro eles demais, nós nos damos muito bem. Quando aparecia uma
chance era também certo um grande obstáculo, que se erguia à minha frente e me derrubava sem dó nem piedade. Eu continuei no emprego e o meu cunhado teve o que sempre quis e nunca teve antes. Meus sobrinhos cresceram lindos, maravilhosos, sadios e eu os amava demais. Se minha irmã me escrevia uma carta dizendo um deles estar doente, "ai meu Deus", eu rezava tanto e pedia a Deus para que essa criança ficasse boa logo. Assim, comecei a ficar um pouco sentimental e passei a fazer versos nas horas vagas. Lembro de alguns:

"A saudade é um ai magoado
É uma dor que dói na gente
Que é recordar o passado
E é machucar o presente."

"Se vires um pássaro branco
No ar fazendo mesuras
Diz que é minha saudade
Que está em volta à tua procura."


Além disso, eu gostava de ouvir música, de cantar e até de assoviar e, por isto, me apelidaram de canária. O tempo foi passando. Depois de minha primeira desilusão amorosa tornei-me uma pessoa fechada e cheia de complexos. Eu me achava feia; aliás, isto eu pensava que os outros achavam. Andava mal vestida, mal vestida sim, porque eu não podia comprar roupa boa e bonita, custava caro. Depois, para que eu deveria me vestir e arrumar bem, para chamar a atenção das pulgas e dos ratos, que à noite faziam estrepolias em meu quarto de dormir? Às vezes chegava a ter inveja das outras moças, que tinham tudo, e ao mesmo tempo mudava de idéia e pensava comigo mesma: "ah, deixa isto pra lá, um dia também hei de abraçar algo concreto, em que também tivesse uma segurança, algo na vida que pudesse dizer isto é realmente meu". E eu, pobre moça, esperava com muita paciência.Lembro bem quando fiz 18 anos, minhas colegas vieram me felicitar logo pela manhã e foi aquela alegria, me abraçaram e ríamos contentes. Não levou cinco minutos e lá vieram, do sótão, os patrões e
podem fazer idéia do que aconteceu... Foi aquela barbaridade, chamaram a minha atenção e claro, a patroa disse que por causa de uma porcaria de um aniversário tínhamos de fazer tanto barulho que incomodamos o sono deles, e vejam bem, eram sete horas da matina e nós já estávamos cansadas de trabalhar, pois que acordávamos às
quatro. Fiquei tão decepcionada que parecia terem se fechado todas as portas e janelas, e que aos meus pés se abria uma vala e eu cairia lá no fundo. Não disse um apalavra, saí dali e fui continuar meus serviços, mas o meu coração estava partido ao meio. Certa vez adoeci, sofri uma inflamação muito grande nos rins, de repente: começou num sábado, senti um pouco de dor mas não falei nada. Domingo, quando quis levantar, não pude mais andar, a dor era tanta e tão forte que havia paralisado as pernas e, se eu teimasse em dar o passo, cairia: fui obrigada a deitar de novo. A moça que trabalhava comigo avisou a patroa, mas foi em vão, ninguém se incomodou. Pelo contrário, a patroa programou um passei para Vila Itoupava, e lá se foram ela, o marido, o filho deles e a filha da cozinheira, de nome Emi, que contava tudo o que escutava, e que eles comentavam a meu respeito. Bem, fiquei de cama sem poder me mexer, deu meio dia e eu nem tinha tomado café. Que domingo maravilhoso, vocês não acham? Esperei o almoço e nada, ninguém vinha me ver para saber se estava viva ou morta. Às três horas da tarde subiu até a porta do quarto o tal sobrinho da patroa, de nome Félix, que foi meu namorado, e ele perguntou " o que é que você tem?" Eu fiquei com vergonha de responder e só disse "não posso andar, e tenho fome, não comi nada hoje". Ele disse que minha colega de serviço só falou à tarde que eu estava doente, até ali ele pensava que eu viajara com os patrões, e disse mais, "vou trazer comida para você, nem que para isto eu tenha que brigar com a cozinheira", e lá se foi ele correndo escada abaixo, como um raio. Naquele instante pensei, puxa! como é bom saber que alguém gosta da gente, que alguém sente algo pela gente, nem que seja pena, sim, porque do jeito que eu estava, só pena poderiam sentir de mim. Não demorou e ele voltou com um prato de comida sortida: arroz, salada de batatas, um pouco de macarrão e dois pedaços de carne de galinha. Adivinhem o que eu fiz?... Devorei aquilo tudo num instante, pois estava faminta. Então o rapaz perguntou o que mais eu queria que ele fizesse por mim, eu disse que saísse do quarto, que já seria uma grande coisa, e depois podia escrever uma carta para meus pais, ou trazer papel, caneta e envelope que eu mesma escreveria. Foi o que ele fez, e segunda-feira ele enviou a carta, e quarta-feira minha mãe já veio me visitar. Momentos há na vida em que a gente fica sem ação. Por exemplo, numa ocasião de emoção a pessoa fica tão
atrapalhada que é capaz de dizer bobagens, se for dizer algo. Juro por Deus que assim fiquei quando vi minha mãe, puxa, que coisa boa, depois de um longo período de tempo, em que só se via rostos mal humorados e até tristes, às vezes, de repente um rosto lindo, "lindo de viver!" aparece. Mesmo que a gente estivesse esperando essa pessoa, da para ficar sem ação, entende? Pelo menos eu fiquei assim quando vi minha mãe, que até parece ter amenizado minha dor. Ela ficou muito triste e com razão, porque eles nada tinham feito por mim, e resolveu me levar dali. Feito por mim tinham, sim, comprado remédio para os rins, e devo dizer que me havia feito bem, mas o pior era que eu não tinha o descanso suficiente para a minha recuperação. Acabei ficando até arranjarem uma substituta e, então, adeus mesmo. Mas em casa eu não podia ficar, porque não tinha como ganhar dinheiro. Era longe da cidade e, na roça, já não dava mais para ficar, pois só com meus pais - e já velhos -, como poderíamos tirar o sustento da terra, pois faltavam braços? Meu cunhado abancara-se na
propriedade dos meus pais e eu perdera totalmente minha casa. Pelo amor de Deus!, ali ficaria só até arranjar outro emprego. Estávamos então no mês de março de 1952.
Ali estava eu sem emprego, sem herança (*) e quase sem esperança. O tempo foi passando como o desenrolar de uma fita, e nela estava gravada minha vida, em que todos os dias podia ver um novo capítulo. Novo, sim, no modo de falar, porque na verdade nada de novo aparecia para mim. Um detalhe que esqueci de acrescentar, no começo: desde pequena eu sonhava um dia ser motorista e dirigir um
ônibus e, no pensar de criança, achava que seria muito fácil e que eu chegaria a tanto. Mas nunca falei nada a ninguém, e naquela época (*) N.A. Naquele tempo era hábito que a herança paterna passasse automaticamente para o filho ou filha que ainda estivesse solteiro(a) e que tomasse conta dos pais. Com a entrada do cunhado como arrimo da família, quebrou-se esse direito. Especialmente levando-se em conta que eu não poderia prover o sustento de meus pais. em que estava atravessando maus momentos, mais do que nunca pensei em aprender a dirigir. Dinheiro de onde?, pensava comigo mesma. Não!, desista, Cecília e desça das nuvens em que estás voando, porque se caíres o tombo vai ser grande, e conseqüências
piores te abraçarão. Nos meus pensamentos desisti, mas não esqueci. No dia 21 de novembro de 1975 tirei minha primeira habilitação como motorista. E o provérbio badalava na minha cabeça: "Quem nasce para 10 réis não chega a vintém". Uma noite tive um sonho, embora deva ressaltar que nunca acreditei em sonhos, "sortista" ou outra coisa parecida. Mas aquele, confesso que me impressionou. Eu, que costumava, e faço até hoje, sempre contar o que sonho, no entanto aquele não contei a ninguém. Guardei como se fosse coisa só minha. Era o seguinte: parecia ser um dia chuvoso e eis que, de repente, pára um carro em frente ao portão, e dele sai um casal muito simpático e queriam me levar para trabalhar em sua casa. Me chamaram: "ei, moça, vem cá". Eu comecei a andar mas o caminho estava cheio de espinhos, ou seriam pregos, não sei, só sei que a mulher dizia "venha depressa", e eu dizia "não dá, o caminho está cheio de espinhos"... Por fim, cheguei perto dela, que me estendia as mãos amavelmente e dizia: "a gente sempre deve andar calçada, então pode andar mais depressa". E nisto olhei para os meus pés e vi que estava descalça, aí eu disse: "os
espinhos furaram meus sapatos". Comecei a rir e então acordei. No outro dia, pela manhã, apareceu uma mulher e me contratou para trabalhar como doméstica em casa de seu primo, em Joinville. Essa senhora se chamava Herta Marquardt. Logo me lembrei do
sonho que tive e pensei: "aqueles espinhos? será que tem alguma coisa a ver com este emprego?" Por outro lado, pensava: "puxa, não pode ser, pois aquilo foi só um sonho, nada mais que um sonho", e disse-me a dona Herta que iria a Joinville trabalhar na casa do tio ou do primo, eu podia escolher. Passados cinco dias, lá estava o casal com um carro, tal e qual eu havia sonhado, só que não me chamaram e, sim, vieram até onde eu estava. Que gente bacana, uma senhora amável e muito carinhosa dizendo que, por se tratar de um casal de velhinhos, e tendo eles uma nora que procurava empregada, eu podia escolher, ficar com os vovôs ou com a nora. Lá chegando (aliás, parti com eles no mesmo dia), vi três crianças muito lindas à espera da vovó, então o mais velho, que tinha sete anos, perguntou para a mãe: "Mamãe, essa moça vai ser
nossa?" Então, ela respondeu: "se ela quiser, sim, meu filho". Olhei para a vovó, que havia me buscado, e disse: "a senhora me desculpe, mas prefiro ficar com as crianças, porque gosto muito delas". A vovó me abraçou e me beijou e disse: "você é a primeira empregada que diz isto", e disse em alemão: Du bist sehr lieb (Você é muito querida). Coube a mim começar vida nova ao lado daqueles pessoas, que demonstravam ser muito boas. Eu, por minha vez, também aprendi a gostar delas. Quando a gente tem algo que, de uma ou outra forma, nos é bom, luta para não perder; se não se tem ainda, luta-se para conseguir; se a gente tem e perde, luta-se então para reconquistar. Tudo isto aconteceu comigo, sabe? Estava então com bom emprego,
certo; mas meu querido pai já estava muito doente. Por outro lado, lutava para alcançar a meta principal, isto é, um casamento, pois perdendo papai, eu sabia que também perderia o meu lar. Então eu pergunto, será que existe destino? Eu não sei, mas se o destino marca algo, até que o meu não foi tão amargo e rude, eu o aceitei assim como apareceu. Se Deus é tão bom quanto acreditamos que seja, nunca deixaria acontecer algo de ruim numa igreja, numa procissão ou numa missa. Portanto, o que aconteceu comigo daqui por diante foi chato, sim, muito chato, mas foi também maravilhoso, foi bom demais, foi algo assim que só Deus podia me dar.

História da minha vida

Amar e sofrer

Certo dia, dentro da igreja, numa missa domingueira, eu vi o homem que eu achava viria ser o pai de meus filhos (eu sonhava com vários), meu companheiro e, acima de tudo, meu grande amor. Aquele rosto eu não podia esquecer, desde a primeira vez que eu o vi, mas passou muito tempo sem que eu o tornasse a ver, horas, dias, meses,
sei lá. Mas finalmente chegou o dia em que nos aproximamos e daí começamos a namorar.
Então aconteceu o pior: a morte de meu pai. Fui chamada às pressas e passei ainda dois dias ao lado dele e, no dia 10 de janeiro de 1954, às onze e meia da manhã, vi pela última vez a cor dos olhos de meu querido papai. Seus lábios ainda mexiam como para dizer qualquer coisa, que já não se entendia mais, e ali terminou a vida de
uma pessoa que eu tanto amava, papai. O enterro, as cerimônias, as lágrimas, a saudade, a orfandade e depois de tudo a volta ao serviço, num vestido preto e muita dor no coração. Olhei ao redor, tudo escuro: faltou a luz do lar paterno, doce e terno para mim. Em março o João, meu namorado, foi me visitar no emprego. Tínhamos, meus patrões e eu, voltado da praia e eu lhe disse que algo estava errado comigo. Ele, automaticamente, disse: "Você está grávida". Alguns dias depois ele voltou com as alianças e noivamos. Quando eu tive certeza absoluta da minha gravidez fomos
minha mãe, meu noivo e eu, para a casa dos pais dele, Pedro Senna e Maria Cândida de Mafra Senna, em Camboriú, para tratar do casamento. Deixei o emprego em maio para me preparar, e isto foi muito desgastante para mim, porque eu gostava demais daquela gente. Mas, na minha situação, não tive escolha. Aliás, fiquei contente por poder então contar com meu marido e, futuramente, meu filho: estava esperando muito por esse momento, de ter a minha família. E essa despedida foi muito triste, porque as crianças choravam, a minha patroa chorava e eu, adivinhem, derretida como manteiga ao sol. O meu patrão foi levar as malas até a rodoviária, as crianças me acompanharam e, quando me despedi deles, o mais novo, o Rui Alfredo, grudou no meu pescoço, começou a chorar e eu chorava junto. O pai dele quis levá-lo e o menino não queria ir. O que mais me doeu é que teve de apanhar ali, nos meus braços, para me soltar, e saiu com o pai aos berros, voltava as duas mãozinhas e pedia para eu pegálo, pois queria ficar com a Tati, era esse o nome que as crianças haviam me dado.
Tem momentos na vida em que a gente acha que o coração rebenta, explode.

O amanhecer

Amanhece o dia, nasce o sol e junto dele eu acordo, abro os olhos e vejo seus belos raios penetrarem por todos os cantos de minha casa. Fecho novamente os olhos e com grande esforço procuro me lembrar um monte de coisas boas que acontecerão no decorrer deste dia maravilhoso, mas nem os raios quentes de um sol bravio conseguem aquecer meu coração, que está frio e desgraçadamente vazio. Olho então para o céu e vejo as andorinhas, ziguezagueando pelos ares, transmitindo toda a felicidade possível,e eu continuo com o coração fechado como um polvo com seus tentáculos recolhidos. Quando Deus deixa amanhecer um dia frio e uma chuva soberba molhando as plantas e caindo forte sobre os telhados, o tédio toma conta de mim, totalmente fria então por dentro e por fora, filosofando sobre o tempo e fico perplexa, o tempo me assusta. Não vejo a possibilidade mental de alcançar tudo o que quero, e acho que
só posso usar a cabeça dez por cento, mas sei que para ter força total deveria usá-la ao menos 90 por cento, e porque não 100 por cento? Eu queria escrever tudo aquilo que sinto, tudo aquilo que sou, mas algo mais forte impede que eu o faça, e assim noto ser uma inútil, uma incapaz de fazer algo por alguém, e desta forma vejo a
morte chegando e eu chegando ao fim.

(21.9.1973)
Mas Deus Onipotente dá sempre a roupa conforme o frio, a emoção conforme a capacidade de suportá-la, quando nos fecha a porta abre-nos uma janela, e para que a gente não se sinta totalmente por baixo, nos dá fé, e dentro da fé nasce a esperança, que faz nascer dentro de cada um grande força de vontade. Então, vem a coragem, que faz a gente enfrentar com calma e muita paciência tudo o que aparece pela frente. Seja bom ou ruim, pode-se superá-lo facilmente. Voltando à história com os pais dele, tudo combinado. Fomos para casa e fiquei esperando marcar a data, já que o mês seria julho de 1954. Eu fiquei na casa do meu cunhado, que também era a casa de minha mãe, então viúva, e meu noivo seguiu viagem para Joinville. Ele servia o Exército Brasileiro no 14.º BC, atual 62.º BI. Ali começaria meu verdadeiro Calvário, coisa que se alguém dissesse que aconteceria eu não acreditaria. Eu, sinceramente, amava meu noivo. Quando a gente escreve algo geralmente vem a mente tudo de bom, que já se tenha vivido, mas os maus momentos também devem ser lembrados, porque da mesma forma ajudam a viver, pelo menos para mim. E ali estava eu na frente de um grande Calvário para escalar, e esse foi o sacrifício, do qual nunca posso me queixar, pois quando cheguei no alto Deus me deu o maior presente que recebi em toda a minha vida. Mas, nessa escalada, dia a dia se afastaria mais o homem
que eu tanto amava,me abandonando definitivamente.E foi ali que conheci a desilusão, gente fingida, sem amor, sem coração. Mas, como dizia, aos 29 dias do mês de outubro de 1954, às 2 horas da madrugada, nascia meu filho, que me trouxe esperanças, mais forças para viver e coragem para enfrentar tudo e todos do jeito que desse e viesse. Nascia ali o meu Menino Jesus, com apenas dois quilos e cinqüenta gramas, mas com toda a saúde que Deus pode dar a uma pessoa normal, como era o meu nenê. Chorei de alegria, em companhia de minha mãe, e foi ela que teve a felicidade de tê-lo pela
primeira vez em seus braços. Dali a cinco dias vieram minha irmã e meu cunhado para me levar para casa, mas já aproveitamos para levar o menino à Igreja Matriz de Jaraguá do Sul e o batizamos com o nome que eu mesma escolhi: Loreno Luiz Zatelli. Como o pai não houvesse assumido a paternidade, encontrei meu jeito de homenagear meu
filho: havia na cidade uma família chamada Marcatto, cujo patriarca chamava-se João (como o pai do meu garotinho), com um filho chamado Loreno. Resolvi, também, chamar meu menino de Loreno, nome do filho de João. Meu filho, meu amor, meu sofrimento, meu tudo e meu nada. Lá estava eu chorando, rindo, de alegria, de tristeza, isto nem eu mesma sabia o porquê. Só posso dizer que minha razão de viver era, agora, maior que tudo nesse mundo, pois tinha aquele menino lindo para criar. Seus olhinhos castanhos e seus longos cabelos pretos, que eu afagava constantemente, eram uma maravilha. Mas os dias passavam rapidamente e meu nenê ficou muito comilão, e meus recursos não davam para comprar leite, e lá fui eu para um novo emprego, dessa vez
com o filho nos braços e muita dor no coração.

Meu filho, o grande amor de minha vida

Beijos, carinhos, cumplicidade, amizade, admiração, bom humor, viagens, bons papos, boas idéias, paixões, paciência, pequenos gestos, grandes momentos... Tudo isso e muito mais sempre passou pela minha cabeça, e até hoje existe isto em mim. De repente olho para o céu e vejo centenas de milhares de estrelas, e não consigo contá-las, me sinto frustrada, mas ao mesmo tempo agradeço a Deus por elas existirem, por existir o céu, o sol, a lua e os satélites, embora ninguém possa tocar. Mas existe a Terra e nesta temos que firmar os pés e seguir firmes rumo à sobrevivência.

Caderno de Poemas Íntimos

Um dia vais saber

Sim, um dia vais saber o que eu sei, um dia sim... O que eu sou, o que eu quero, o que sinto, o que tenho, o que faço, o que te dei e o que recebi; quanto chorei e quanto sorri; sim, um dia vais saber. Todos dão-se as mãos e seguem em frente, na esperança de uma vitória. Enquanto eu te estendo minhas mãos e tu nem as desejas tocar. Em vão peço-te migalhas de amor, em troca recebo uma esmola e um cala-a-bôca. Chego a pensar que o amor é realmente banal, mas no meu peito o coração fala mais alto. Meu peito quase explode de tanto amor, mas infelizmente vivo com alguém que não conhece o amor e nem nunca vai conhecê-lo, porque o coração dele é de pedra. Sim, é de pedra...

(3.7.1978)

O ontem, o hoje e o amanhã

O ontem é passado e ficou para trás. O que é que eu fiz na minha jornada? De tudo um pouco e de algumas coisas, muito. Como, por exemplo, chorei muito e ri muito, eu também rezei, doei, cantei, andei, parei, lutei, passeei, trabalhei muito e ainda trabalho, e gosto disso. Montei a cavalo e dirijo automóvel, li muito e ainda leio,
estudei pouco e aprendi muito. Por isto e por muito mais agradeço a Deus por poder ter feito. O hoje. O hoje é presente, é isto que estamos vivendo agora, é fazer tudo
o que se fez ontem e muito mais. É rir quando se tem vontade de chorar e chorar quando se deveria rir, andar quando se deveria parar e parar quando se deveria seguir. Olhar sem vontade de ver, e ver sem vontade de olhar, ter sem saber o quê e perder sem ter tido. Esperar sem saber por que,e quando chega o amigo gritar: "olha, meu amigo chegou". Estou desde as 12 horas esperando, mas esperando o quê? Horas, sim, as 5 horas da tarde, este é o presente entrando no futuro, o amanhã. Que venga el toro, sim, porque não se sabe o que vai acontecer amanhã, pode chover ou fazer sol, porque o futuro a Deus pertence, e ele faz do futuro o que quiser, então não tenho nada a dizer do futuro.

(4.9.1998)

A um quilômetro da casa do meu cunhado, ainda na Barra do Rio Cerro, me empreguei na casa do farmacêutico Antônio Manoel Corrêa, que tinha ali uma pequena farmácia, a Farmácia Galeno. Antônio era farmacêutico prático. Casado com Elda Baechtold, tinham três filhos: Vilma, Jaime e Jurema. A filha mais velha, Vilma, faleceu aos 18 anos vítima de acidente de trânsito em Joinville, quando praticava no Laboratório Catarinense, se preparando para eventualmente cursar farmácia e prosseguir com a profissão do pai. Foi enterrada no Cemitério Municipal de Joinville, vestida de
Rainha do Botafogo, time de futebol muito importante na época para Jaraguá do Sul e que ficava localizado na Barra., com o campo próximo ao Benthien, numa propriedade da família Buzzarello. O salão era à beira do rio Cerro, após a ponte coberta, em frente ao comércio do senhor Wolfgang Weege. Haviam construído uma nova sede um pouco mais adiante, em direção ao Rio da Luz, cerca de cinqüenta metros antes da Igreja Luterana da Barra do Rio Cerro. Mais tarde, Antônio e Elda tiveram uma filha da qual eu fui madrinha. De certa forma essa menina, Janice, veio preencher o vazio deixado pelo desaparecimento da Vilma. Foram excelentes patrões, e deles guardo muito boas lembranças. Antônio faleceu em Joinville pouco antes de completar 60 anos, sendo sepultado com sua avó, Infância, sua mãe Lúcia e sua filha Vilma, no Cemitério Municipal daquela cidade. A Dona Elda continua minha amiga até hoje.

Pela última vez

Abra a porta, entra em minha casa e vem tomar um café comigo, nem que seja pela última vez. Lembro com saudade a última vez que dobrei aquela esquina para poder te ver. Tudo tem um começo e um fim, tudo começa e acaba. Até o gelo, por mais gelado que seja, derrete na hora certa. Quando tudo à tua volta desmorona, quando as janelas e as portas não mais se abrirem, quando o sol não mais surgir, mesmo assim
sorria mais uma vez, mesmo que o teu sorriso seja triste, sorria para viver bem, pois uma vida curta bem vivida é uma longa vida. Portanto sorria, nem que seja pela última vez. A brisa da madrugada roça os verdes montes e os jardins que embelezam os lares. O ar puro que vem de longe, trazendo-nos esperanças, respiremos profundamente nem que seja pela última vez. Se toda a humanidade vivesse intensamente todos os momentos de suas vidas, sem ódio, sem rancor, sem orgulho, sem inveja, viveria com muita paz e alegria, amor e sabedoria e um grande sorriso, como se fosse este o último. A vida é um jogo, ou se ganha ou se perde, e eu sinceramente prefiro perder honestamente do que ganhar arbitrariamente. Aqui dentro do meu peito tem um coração, e ele ama loucamente, às vezes fora do tempo ou na hora errada. Então procuro detê-lo e ele me responde: o amor assusta, o amor mete medo, ele cria independência e ansiedade, deixe-me amar com toda a minha força, nem que seja pela última vez. Então, eu dou razão a ele, porque o amor é belo, o amor faz viver,ame coração, ame muito, nem que seja pela última vez.

(18.4.1975)
Destaque. Quando deixei o emprego em Joinville para me casar, ganhava Cr$ 500,00 por mês, vejam só meu progresso. Agora, com um filho e quase um ano mais tarde, pois meu filho já estava com dois meses, passei a ganhar Cr$ 100,00 por mês, isto é, Cr$ 400,00 menos, agora que precisava mais. Mas para mim, que ganhava comida e cama, e ainda o leite para o meu nenê, era melhor cem cruzeiros que nada, então venha a nós o Vosso reino. Sempre lutando contra a maré, com grande fé no futuro e também muita vontade de conquistar algo de bom para o meu garotinho. Os dias passavam rapidamente e lembrei de escrever uma carta para os pais do meu ex-noivo, participando o nascimento do menino. E veio a resposta, desejando tudo de bom para o nenê e as bênçãos de Deus para ele, e muita saúde para mim, para que eu pudesse criá-lo. Eu
lutando contra tudo e contra todos, inclusive contra o tempo, pois os dias que passavam dificultariam as coisas para mim. Tive outras propostas de casamento, mas não aceitei, pois achei que dessa maneira estivesse desprezando meu filho, ou trocando-o por outro amor, e isto eu não podia fazer de jeito nenhum.

A arte. A arte, o que é a arte?

Do que a arte precisa? Da solidão, da miséria? Ou da paixão? A arte é uma flor das rochas, que exige um vento áspero e rude. O que é a arte? não sei. Sou pequena demais e não consigo enxergar muito longe, e buscar tudo aquilo que queria ter bem perto de mim. O desejo será que é uma arte? não, isto não. O amor é uma arte?
não, mas a arte precisa do amor, de muito amor. A vocação é uma arte? não sei, mas a arte precisa da vocação. Tenho muito medo, e o medo é uma arte? Medo do amor, do
ódio, da fome, da fortuna, da bondade, da justiça e da injustiça, de tudo e de todos, medo de deitar e nunca mais levantar. Medo de sonhar um sonho fantástico e nunca mais voltar à realidade da vida. Medo do vazio e da solidão, é isto! Descobri, o medo é uma arte, já que a arte precisa do medo e da solidão. Mas será que sou uma
artista? não. Uma artista não sonha, ela age, e eu, no entanto, vivo sonhando, mas o sonho é belo e tudo o que é belo é artístico. Minhalma está cheia de esperança e esta esperança que eu tenho é uma arte, que jamais morrerá.

(29.10.1973)

História da minha vida

Viver

Quando meu filho estava com um ano e quatro meses aconteceu algo em minha vida que me deixou perplexa, sem poder dizer alguma coisa. Alguém do outro lado da cerca dizia: "Este menino é meu, ou vai ser meu, você não ganha ele mais". Com tão pouca idade meu nenê falava quase tudo e desde os nove meses já andava, e era cheio de
saúde e de uma inteligência extraordinária. O que aconteceu vou contar: o menino brincava no pátio e foi até a cerca do vizinho. Do outro lado havia uma pequena marcenaria, do senhor Camilo Andreatta, e ali trabalhava um homem de profissão
marceneiro, é claro. Era um homem muito sofrido e alcoólatra. Esse homem conquistou o amor de meu filho. Passando-o por cima da cerca e levando-o para junto de si, na pequena marcenaria, dando martelo e pregos para o menino brincar. Quando eu dei pela falta de meu filho corri para o pátio, comecei a chamar e fiquei desesperada. Todos
vieram em meu auxílio na procura do nenê quando então, da pequena fabriqueta, ouvi uma voz que dizia: "Dass ist mein Junge" (Esse é o meu menino) e, com o menino nos braços, esse homem que eu não conhecia disse "venha buscá-lo, mas deixe que ele venha todos os dias me ver, por favor, faça isto por mim". E assim foi passando o tempo e, mesmo sem minha ordem, o menino corria para a cerca e com os bracinhos levantados dizia "upa, tio, upa". Entre todas as palavras que ele dizia, essas ele pronunciava bem à beça. Após o homem conquistar o menino, chegou então a minha vez. Ao meu patrão, ele pediu licença para falar comigo, mas eu não quis. Daí aconteceu mais um fato extraordinário na minha vida.

Encruzilhada da vida

As encruzilhadas das vias públicas têm sua preferencial, e o sinal marca "Pára", dê então a preferência e depois siga. O cruzamento da linha férrea diz "Pare, olhe, escute e passe", sendo assim um pouco diferente porque só tem dois sentidos. A encruzilhada da vida é obrigatória, a placa não diz "Pare", mas sim Pense e Siga em frente, sem olhar para trás, porque poderias te assustar com o que fica, mas pela frente vem muita esperança. Mesmo que a pessoa sinta necessidade de olhar para trás
não deve fazê-lo, porque estariam todos a postos para lhe arrancar os olhos. Se o fizer, cuidado quando olhar para trás, ou para os lados, isto pode lhe ser fatal. Portanto, o meu passado não foi vergonhoso nem envergonhador, foi cruel e difícil, foi bom e ruim, me surrou bastante, mas não reclamo, o que passou não voltará
jamais. Posso, portanto, olhar para trás de cabeça erguida, sem medo. O meu coração é do tamanho do mundo, sempre tem lugar para mais alguém, no bom sentido, é claro, e é isto que me entristece, pois ninguém me entende. A fortaleza de espírito sem a
ternura do coração é fraca e egoísta, deixa a vida do homem num inverno perpétuo.
Quem é duro de coração não ama verdadeiramente, valoriza as pessoas principalmente pela utilidade que lhe proporciona. Não chega a gozar a beleza da amizade porque é demasiadamente frio para sentir afeto por alguém e pensa somente em si, não podendo
compartilhar da alegria ou aflição dos outros, é uma ilha deserta e solitária. Se digo ao mar que o amo, as chuvas o dirão ao mundo. Bom é ser importante mas muito mais importante é ser bom.

(24.9.1976)
O menino adoeceu e pela primeira vez esteve muito mal, com uma pneumonia tão forte que em dois dias já não havia mais nada a fazer. Fiquei desesperada, mas passei pela provação. O meu patrão disse que iria tentar com mais uma injeção e ele disse, olhando bem nos meus olhos: "Eu faço a injeção e você faça prece a Deus, com muita devoção, porque sem Deus nada podemos fazer". Ali estava eu com meu filhinho nos braços, quase se passando e do outro lado o farmacêutico, com a seringa na mão, pronta para aplicar. Mais do que nunca pedi ao Todo Poderoso que essa fosse a injeção da vida, que ia ser aplicada no meu menino. Deus me ouviu e dentro de três horas ele já se via em fase de recuperação. Eu sabia que esse não seria o último obstáculo a se erguer à minha frente. Com o meu filho fora de perigo, nada mais eu temeria, agora eu tinha novamente muita vontade de viver para poder criar o meu filhinho. Os dias passaram, findou a semana, enfim domingo. A 500 metros de onde eu trabalhava havia o campo de futebol do Botafogo Futebol Clube. E nesse domingo se realizaria uma partida de futebol no Botafogo, e os meus patrões com a família participaram desde cedo, porque ele era Presidente do clube. Eu fiquei em casa com o meu menino, que se recuperava muito bem e rápido. Mas o meu filho ainda não queria comer. À tarde, pude dar uma voltinha até o campo, isso com permissão do farmacêutico, que era meu patrão. Lá chegando, me serviram um café com doces, mas o meu nenê nada quis. De repente, vi que ele estava devorando um pedaço de bolo gulosamente, virei para ver quem havia dado e lá estava o marceneiro dando bolo para o meu filho, e ele, por incrível que pareça, aceitou e comeu tudo, e o homem disse: "Viu, ele comeu porque fui eu quem deu". Era o destino novamente prostrado a meus pés, um obstáculo do tamanho do mundo, e eu me agarrando com unhas e dentes para poder transpô-lo. Eu sabia que estava chegando a hora de enfrentar mais um
desafio. Só achava cedo para tomar qualquer iniciativa, pois eu não sabia se gostava desse homem ou se sentia pena, pois ele já estava embriagado. Daí, ele tomou o menino em seus braços, com o pretexto de me acompanhar, mas peguei o menino e fui sozinha para casa. O tempo passou e eu ali, com um grande problema para resolver. Comecei a pensar nas dificuldades que surgiriam no futuro em relação a um bom estudo para meu filho, e ali do lado um homem que prometia dar tudo isso e muito mais ao menino. Mas eu, cada dia que passava, mais pena sentia dele. Ele fazia tudo para me conquistar e eu só sentindo pena dele. Mas no fundo, o que ele queria não era só
uma mulher, e sim mais que tudo uma criança, já que não podia ser pai. Eu via a ansiedade quando dizia que ainda não havia me decidido. Com sinceridade eu digo, ele não fazia meu tipo, e talvez por isso eu não conseguisse sentir amor por ele. Eu achava ele uma pessoa boa, compreensiva, um pouco carinhosa e só, a palavra amor não
existia de minha parte, e da parte dele eu não sabia se podia existir, porque sinceridade a gente não vê logo numa pessoa, e eu precisava de algum tempo para ver se era verdadeiro tudo o que ele dizia. Num período de janeiro a agosto houve um namoro que eu chamo mais de reconhecimento de área, para depois fazer a tentativa de convivência. De repente, me senti muito desamparada e com uma vontade enorme de ver o mundo cheio de barrancos para poder me encostar e morrer. E por isto aceitei ir morar com ele e começar vida nova, esse era meu ponto de vista. Houve quem contrariasse, nem liguei. Tomei essa decisão quando meu filho estava com um ano e dez meses incompletos, no dia 15 de agosto de 1956.

Quem és?

Quantos anos tens? Qual a tua altura, és gordo ou magro, preto ou branco, bonito ou feio, bom ou mau, jovem ou velho, alegre ou triste, feliz ou infeliz, pobre ou rico? Mas, afinal, quem és? Eu de ti não sei nada, só sei és gente e isto é o mais importante. Não te feches num quarto sozinho para pensar na morte, ou na dor, não! Nunca faça isto. Quando estiveres triste ou deprimido, com problemas e dificuldades, venha para a rua ter com a gente que aqui transita, à procura de um amigo que como tu seja gente e também precisa de uma palavra amiga. Não te tortures nunca com nada e por nada, pensa sempre que és gente e estás vivo e a vida é maravilhosa. Viva enquanto Deus te permitir e não deixe que o demônio tome conta de tua preciosa vida, pois ele com sua maldade já levou muita gente ao suicídio, mas tu és gente e como tal deves agir, com muita fé e paz de espírito, para continuares a viver, porque seja como for, és gente e isto é muito importante. Para a frente e para o alto será sempre o teu lema.

(25.7.1975)

Quinze de agosto que deu muito gosto

Um começo de vida a dois, ou melhor, a três, porque já existia uma criança de um ano e dez meses. Eu não imaginava que a vida fosse tão boa, começando sem nada, ou melhor, quase nada. Muito trabalho, muita força de vontade para crescer na vida. E
conseguimos, montamos uma pequena fábrica de móveis e juntos fizemos esta pequena fábrica progredir, e daí sim, ter o nosso sustento. Os anos passaram e nós lutamos muito, eu trabalhava com meu marido Theobaldo na fábrica, na qual se faziam móveis e
esquadrias. Eu pintava e envernizava os móveis e também trabalhava nas máquinas, por exemplo, na lixadeira, na furadeira, na cepilhadeira e outras, e era muito bom porque estávamos fazendo o nosso negócio render. Nas horas de pouco serviço na
fábrica eu ajudava meu sogro, Gustavo Hagedorn, a apanhar trato para o gado e fazia também os serviços da casa, junto com a minha sogra, Joana Hagedorn. Com o passar do tempo conseguimos construir uma casa nova, de material, já que onde nós morávamos era uma casa pequena e velha, de madeira. Mas até então também já havíamos construído
um galpão e tínhamos três vacas, que eu cuidava, tratava, tirava leite e vendia para os vizinhos, e era mais uma renda para ajudar no orçamento. (sem data) Passamos a residir na casa dele, em Jaraguá do Sul, na rua Venâncio da Silva Porto, 533, onde até hoje resido. Formamos uma família: Theobaldo Hagedorn, Cecília Zatelli e o pequeno Loreno Luís Zatelli, que mais tarde, em 1961, passou a se chamar Loreno Luiz
Zatelli Hagedorn. Montamos uma pequena marcenaria, fábrica de móveis. Eu trabalhava junto com meu marido e alguns funcionários. Mesmo no meio disso tudo eu ainda ajudava meus sogros: senhor Gustav August Ferdinand Hagedorn e sua esposa, senhora Johana Louise Wilhelmine Hoepfner. Eles tinham gado leiteiro e eu sempre ajudava no que podia, buscando ração, trato para o gado na roça, onde hoje aproximadamente se encontra o quartel da Polícia Militar. Ia com uma carroça puxada por um cavalo. Eu e meu marido também cuidamos dos pais dele até a morte. O Theobaldo tem ainda um irmão vivo, o Harry e uma irmã, Ondina.

A solidão

O medo de ficar sozinha me apavora, mas tem horas que eu preciso sentir o gosto da solidão. Para mim, a solidão é por vezes gostosa e necessária, pois preciso dela para por em dia as minhas idéias. Para poder nascer de novo, testemunhar tudo o que fiz e deixei de fazer em toda a minha vida, para poder morrer em paz, quando for chegada a hora. Sim, porque nascer, morrer e testemunhar são três coisas que a gente precisa fazer sozinha. Talvez o termo não seja este, mas não sei explicar melhor e para mim está certo. Eu gostaria de fazer aquilo que penso, mas não posso, sou portanto uma mulher frustrada. Daí que a solidão é minha grande companheira, porque nas horas vagas ela me ajuda a viver, em pensamento, tudo aquilo que eu gostaria de fazer e não posso. O que eu sempre pergunto a mim mesma é: o que é o pecado? Será que amar é pecado? ou sonhar, agir, fracassar, fugir, roubar, matar. A minha pergunta será indiscreta? Não tem importância, porque se a pergunta não for discreta a resposta pode ser. Eu gosto muito de ler, escrever, assistir TV, ouvir boa música, gosto de dançar e também me divirto muito fazendo palavras cruzadas, mas será que isto é pecado? Que nada, no meu ponto de vista pecado é ser ignorante quando se tem a oportunidade de ser instruída e culta, para poder pôr todas as idéias em prática. Eu tenho medo da solidão; mas ela é minha companheira, é a própria vida. Sim, mas a
vida não é um prato de cerejas que só precisa pegar. A gente precisa sair, andar, andar até achar o pé. Chacoalhar a planta para as cerejas caírem e podermos apanhá-las então. Como se vê, não é tão fácil quanto imaginamos conseguir o que queremos. Aquele motorista sempre dizia, nunca fui um solitário, não quero ser um solitário, eu
não suportaria estar só, a solidão me mataria. Ele parte de carro com um colega, olha o marcador, 100 km horários, mas estou com um colega: pisa no acelerador e vai a 110, 120, 130 por hora. A solidão já estava tentando fazer sentir o seu gostinho. E lá adiante o acidente acontece, seu colega morre, ele então se sente só ao lado de
um cadáver e uma máquina destruída. Se não fosse a solidão estaria completamente só, e se lembrou que a solidão é a única que nunca nos abandona e disse: A solidão também é minha companheira. Ele deve ter lembrado, naquela hora, que é bom calar na hora exata, porque nem a dor nem a solidão matam...

(31.1.1974)
Os bombardeios começaram como se começasse uma guerra, dificuldades, sem louças, sem móveis, com apenas um jogo de quarto e uma caminha para o nenê, que aliás ele ganhou dos meus patrões, um fogão de lenha onde eu cozinhava e era ao mesmo tempo mesa. E
assim os anos passaram, o menino cresceu, mas eu cheia de dúvidas, porque eu sempre gostei de trabalhar mas o meu marido continuou a beber e eu ficava muito insegura. No meio disso tudo havia uma pessoa que me dava todo o apoio e segurança que estava ao alcance dela, essa pessoa era minha mãe. Mais tarde, já com muita coisa adquirida com o próprio suor, podíamos ter uma vida muito boa, mas o sucesso não foi maior justamente por causa da bebedeira do meu marido. Como eu dizia no início desta narração, o passado não pode e nem deve ser esquecido, portanto vou contar algo mais sobre meu passado. Às vezes eu parecia estar num labirinto sem saída, porque sinto cá no meu peito estranho fogo a arder, mas qual é o seu nome? Eu não sei lhes dizer.
Eu sou e sempre fui muito sentimental e, como qualquer outra moça, eu sonhava com um casamento decente, de véu e grinalda, dizendo muito absolutamente sincera o Sim para o padre e para o juiz, mas se o remorso me escalda, a consciência me diz que não é somente a grinalda que faz a mulher feliz. Como também já disse, meu marido era um doente, ou melhor, um alcoólatra, que precisava de um bom tratamento, mas não tínhamos condições financeiras e ninguém nos ajudou. Meu marido freqüentava ambientes pouco recomendáveis, com prostitutas de terceira categoria e deixava lá o pouco dinheiro que possuía. Fui uma vez buscá-lo para ver se ele tomava vergonha na cara e mudava de vida, mas qual: ele estava com uma dessas mulheres, e então ficou uma fera e eu, mais uma vez, me dei mal. Ele chegava a tirar a aliança para dizer que não era comprometido. As águas correm pelos rios e fontes até alcançarem o grande
oceano. As aves se multiplicam e todos os seres racionais e irracionais progridem, menos nós, que ali ficamos marcando passo, dia a dia sem progresso, e portanto, um futuro incerto.

Abro a porta

Abro a porta e deixo a noite entrar na esperança que traga de volta meu grande amor; e nada, a malvada vem só. Eu mais uma vez estou aqui, sem poder saciar a fome, tenho as mãos cheias de doces e suspiros, mas estou só. Olho, então, pela janela do meu
quarto e ninguém sequer acena para mim e continuo só. Volto até a sala e vejo seu retrato, viro-o na esperança de que atrás dele encontre o que procuro, mas em vão, pego um chocolate, abro-o ao meio, na intenção de reparti-lo com ele, meu grande amor, e mais uma vez não está comigo e eu estou só. Deito no sofá, levanto os olhos para o teto e o vejo frio com sua cor branca como a morte. Em cima da mesa, um vaso com flores e um cinzeiro, ao lado um armário e sobre ele a balança caseira, onde eu
costumava pesar os ingredientes para fazer seus doces preferidos, que hoje já não faço mais. A minha noite é de pesadelos, fecho as portas e as janelas para ficar sozinha com a noite, e chorar a ausência de meu grande amor. É madrugada, o sereno caindo soberbo sobre as plantas, anunciando um dia cheio de vida e de sol. Abro a porta e deixo os raios de sol penetraram em minha casa, e eu gritando: entrem, entrem! Venham comigo procurar o amor, mas nada encontramos. Então, vejo os pássaros voando e uma voz de consciência me diz: ame os pássaros, os animais, que eles lhe permitem que os ame sempre. Mesmo que os passarinhos façam seus ninhos e se casem podes continuar a amá-los sem perigo algum, e sem magoar ninguém. Os cães, os gatos podem se multiplicar, mas podes continuar a amá-los sem medo que alguém te proíba.
Agora sei que só podemos amar o que nos for permitido, e o que for proibido deixa que outros amarão. E assim abro a porta, deixo a luz do sol entrar, na certeza de
que não lesei ninguém.

(10.5.1975)
Durante dias eu ficava sozinha com meu filhinho, que com seus três aninhos era meu maior consolo, e se eu estava agüentando tudo aquilo era por ele, porque apesar de tudo eu ainda tinha fé num futuro melhor. E ali estava eu, com uma fé maior que o próprio universo, uma alma crente e um coração em pedaços, sempre acreditando num futuro melhor. Quando a noite caia e nada de meu marido voltar ao lar, o pouco de comida que tinha dava para o menino, que depois dormia tranqüilo. Então eu ia para a varanda da nossa velha casa e ali chorava até me doer o corpo todo, de tanto soluçar, com os olhos para a rua, vendo se enxergava um farol de bicicleta: seria, então, meu marido chegando das farras da noite. Era isto aí um futuro melhor? Mas como, se eu nem sabia mais sorrir. Quando alguém falava comigo sem saber da minha mágoa, do fundo do meu coração eu tinha vontade de dizer: "Tira o teu sorriso do
caminho para eu passar com a minha dor". Talvez eu tenha sido muito pessimista, mas é a realidade, é um passado que ficou para traz e calou fundo em minha alma, mas nem por isto devemos esquecê-lo. É bom lembrar o passado mas sem rancor ou ódio, sem magoar ninguém. O filho já crescido, cursando o segundo científico, teve que servir o Exército na capital federal, Brasília, um ano de Serviço Militar. Tomando outra etapa de nossa vida, digo que depois de dois anos de tratamento o meu marido deixou completamente o vício da bebida. A minha maior preocupação era meu filho. Recebi uma carta dele, dizendo ter sido internado três meses num hospital. Peço a Deus que nos ajude e dê ao nosso filho toda a saúde possível, para que ele possa estudar e trabalhar. Não é egoísmo de minha parte quando digo que o filho precisa trabalhar, absolutamente, é apenas porque, do meu ponto de vista, todas as pessoas devem trabalhar, pois o trabalho ajuda a vivenciar em todos os sentidos: o físico, o moral e o financeiro.

Eu aconteci

Os meus pais acharam que eu devia ser, Deus concordou com isto e eu aconteci. Hoje sou, sei e tenho.Sim, porque vencer na vida não é só ter, precisa ser, saber e
muito mais. A sabedoria não é uma flor que se possa colher quando se queira, é uma grande montanha e deve ser escalada. Por isso eu agradeço a Deus, por ter me dado a inteligência de saber ler, e a capacidade para que eu possa, num simples papel, escrever o que sou, o que sei e o que tenho. Sou filha, esposa e mãe, emotiva e
tolerante, no fundo me considero humana, muito humana. Sou muito ciumenta e um pouco triste, talvez. Nunca fui nem quero ser egoísta, nem perdulária, sou econômica. Não sou da sociedade porque não gosto, adoro mais a realidade e a espontaneidade. A
sociedade tem "quebradas" e por isto acho que tem também muita falsidade, e eu não me sentiria bem nesse meio. Talvez poderia fazer um papel social numa novela, ou teatro, mas apenas representar, porque meu modo de ser é outro. Sou simples e realista, sou forte e fraca ao mesmo tempo. Gosto de ser mandada e receber ordens, portanto, tenho medo de enfrentar algo sozinha, medo de errar, de falhar. O que eu sei? Sei que o mundo dá muitas voltas e tudo pode se transformar, eu só não consigo esquecer. Sei respeitar, sei que tenho defeitos, mas sei também que tenho virtudes. Não sou fora de série, ou extraordinária, sou apenas uma mulher que vê, que houve e sente como qualquer outro ser vivo, mas sou eu, apenas eu. O que eu tenho? Ah!, sim, antes de mais nada tenho vergonha na cara, tenho paz de espírito, muita força de vontade, uma família maravilhosa, tenho conforto e tranqüilidade. Tenho temor a Deus, medo das guerras, das desavenças, tenho amor ao próximo quando vejo que ele
merece, se vejo que não convém, sem me arrepender dou o desprezo. Tenho muita vontade de escrever e gosto de fazê-lo, por isto neste simples papel tentei escrever aquilo que sinto no meu íntimo, tudo o que eu gostaria de dizer a alguém e que no momento exato não está presente a pessoa certa, que deveria ouvir, por isso resolvi escrever. Tudo o que pensamos tem um fundamento. Tudo o que dizemos são palavras, nada mais que palavras, mas todas têm a sua finalidade. Os ricos acumulam suas riquezas, seus prazeres, sua felicidade, os pobres seus desejos. Eu acumulo amor, fé, otimismo, sabedoria e, acima de tudo, esperança para poder continuar sendo,
tendo e sabendo.

(3.11.1974)

A partida do filho amado

Foi exatamente no dia 10 de maio de 1973 que isto aconteceu. Em plena madrugada de inverno, às três horas da manhã, foi o momento mais triste de toda a minha vida até então, pois vi partir meu filho que, como bom brasileiro e cidadão honesto, seguia para juntar-se aos demais colegas para servir a Pátria, incorporando-se na Polícia do Exército em Brasília, capital de nosso querido Brasil. Os meus olhos se transformaram em nascentes que vertiam água e mesmo que eu fizesse o maior esforço para que isto não acontecesse, eu não podia impedir. Seguindo-o com meus olhos
tristes, até onde puder ver e por fim perdi-o de vista, desaparecendo na escuridão da madrugada. Fiquei vendo apenas uma silhueta quando passava sob os faróis da iluminação pública, até desaparecer na primeira esquina, e foi como se meus olhos tivessem apagado, ficando sua imagem viva no meu coração, que por sua vez também sentia a dor da despedida. Minha última esperança era que por ser filho único ficasse no excesso de contingente da última seleção, mas isto não aconteceu e partiu definitivamente. A espera das primeiras notícias foi um verdadeiro calvário. Enfim, a primeira missiva, as minhas mãos tremiam ao abri-la, e quando quis começar a ler não pude agüentar e chorei copiosamente, quando olhei para o meu marido que estava
ali ao meu lado pude ver que seus olhos também estavam rasos d'água, e observei que ele sentia tanto quanto eu a ausência do filho amado. Sete meses se passaram, e muitas outras cartas chegaram com fotos dele, e com estas eu me consolava, porque uma carta qualquer pessoa pode escrever, mas a foto era dele, trazendo a certeza que ele estava vivo e muito bem disposto. Muitas também foram as cartas que nós mandamos, e o tempo passou, o Natal estava próximo e quando menos esperávamos, veio a notícia que ele viria passar o Natal conosco. Fazia então sete meses que não o víamos pessoalmente, e ninguém a não ser o coração de uma mãe pode dizer quanta e quão grande foi a minha ou a nossa alegria quando este filho chegou. Sendo esta a segunda vez de espera, com a diferença de que na primeira vez não sabia se seria rapaz ou menina, e desta vez sabia que era um homem, sim, porque esta não era a
espera do nascimento e sim a volta de uma triste partida. Enfim, a chegada, a alegria, o abraço, a correria para cumprimentar o vovô, a vovó, os tios, mas é claro que antes disto tudo os cumprimentos foram para nós, os pais. O nosso filho continuava o mesmo, só mais magro, e isto me entristeceu muito, e até hoje não sei se foi a comida ruim ou a saudade que deixou nosso filho tão magro. Dias felizes transcorreram, passou o Natal e novamente o filho querido partia, para o final da etapa de sua vida militar. Com isto novas dores, novas tristezas e paixões, grande
saudade e novamente a espera à volta. Abril de 1974. Todo o sorriso, tudo o que ele falava, toda a gíria que ele usava, tudo, enfim, foi e é e sempre será lembrado com muito carinho, por uma mãe que sente um tédio profundo e a alma cheia de saudade
enquanto espera a volta do filho amado. Dia 27 de abril de 1974, quando eu menos esperava, vi um táxi parar na frente da minha casa, e para minha grande alegria vi meu filho desembarcar. Foi uma surpresa porque era esperado para maio, mas naquela hora a alegria e o contentamento fizeram-me esquecer o resto. Foi o fim de um ano
de angústia, tristeza e grande saudade, que aliás para mim um ano parecia um século, mas como se vê tudo tem um começo e um fim, e este foi o fim do Serviço Militar, para agora começar a vida civil nova de Loreno Luiz Zatelli Hagedorn. (27.4.1974)
O dia 10 de maio de 1973 foi o dia da partida do meu filho para Brasília, a fim de servir a Pátria. Por ser a vez primeira que ele se afastava da casa, para passar muito tempo fora, sem que pudesse vêlo, entrei em depressão, fiquei agressiva, muito nervosa, não podia comer. Então o meu marido mostrou que também podia ser bom e
paciente, fazia tudo para que eu me sentisse bem. Quando chegava uma carta do filho, eu a lia chorando e respondia chorando, mas superei também essa fase. O tempo passou e o meu filho, que estava servindo o Exército, voltou depois de um ano de sofrimento. Mas como ele já era um homem, queria ficar numa outra cidade, para estudar e trabalhar. Eu percebia que, aos poucos, o nosso filho estava se afastando dos pais e é claro que isto, menos dia mais dia, tinha que acontecer. Não podemos
exigir que fiquem sempre ao lado da gente, porque todos precisam do seu espaço.

A Rodoviária

Será que existe alguém neste mundo que não sabe ou que não conhece a uma rodoviária?
Moço, uma rodoviária é um lugar muito bem instalado e organizado, para receber os ônibus que transportam a gente de todo o Brasil, ou melhor, do mundo. A rodoviária, moço, é onde há tristezas e alegrias, é onde milhares de pessoas embarcam e desembarcam, que chegam e que partem, para perto ou para longe. É um lugar de acenos e de lágrimas, onde muitas vezes se despede alguém, que espera-se volte logo, e às vezes nunca mais retorna. Na partida dos ônibus os alto-falantes anunciam para o
embarque e os corações se separam, digo os corações porque a alegria nos invade na alma e atinge o coração. É assim, nos olhos de cada um vê-se logo se está triste ou alegre com a despedida do outro, sim, porque o coração e os olhos são dois amigos leais, quando o coração está triste logo os olhos dão sinais. Crianças brincam alegres na rodoviária, devorando os deliciosos bombons e pipoca que a mamãe comprou, o homem entra na lanchonete e toma um café com sanduíche, a senhora toma um refresco com doces, os jovens uma cervejinha, mas todos esperando a sua vez do alto-falante anunciar a partida, e seja ela triste ou alegre, vem a despedida e esta geralmente é dura. É a exemplo de tudo isto que eu tenho aqui, no meu peito, um coração apertadinho e muito triste pela despedida que tivemos hoje, eu e meu marido, na rodoviária de Curitiba, PR, ao meio-dia. Despedida do nosso filho, que ficou na rodoviária acenando a mão, que reluzia seu relógio de pulso com o sol do meio-dia, que certamente dizia "até logo, meus pais", eu daqui ainda repito "até logo, meu filho".
(2.6.1974)

O grande amor do dia-a-dia

É verão; o calor é intenso, a angústia é grande, a sede insaciável. Cedo pela manhã é um corre-corre, uns para as indústrias, outros para as casas de comércio; uns vão às vendas, outros às compras, os estudantes correm felizes para não perder a condução que os leva cada qual às suas casas de ensino e com grande amor todos se
ocupam em fazer algo. Até os mendigos vão para o seu ponto e lá ficam o dia todo, sob um sol bravio, escravos da própria sorte, a estender sua mão com a esperança de que uma alma boa deixe cair uma mísera moedinha para o pão de seu dia a dia. Mas o importante é que na ocupação de cada um existe o amor. E vem o outono, que faz todos pensarem no próximo, e aproveitando os preços, vão correndo para as lojas comprar
agasalhos, cobertores, meias para as crianças e aquele comentário: vizinho, o inverno vem aí... Todos se preocupam e armazenam lenha para que o inverno não os pegue desprevenidos, e ainda ali existe o amor. E chega o inverno, brrr, todos tremem de frio, as folhas começam a cair, as flores perdem a beleza e o perfume e caem por terra, desfalecidas. Os pássaros se evadem para as matas, abandonando os campos e os jardins, de onde muitos deles tiraram o pólen das flores para o seu alimento, mas mesmo assim não há rancor e sim, existe ali grande amor. Finalmente rompe a aurora e com ela a sonhada, a esperada e muito maravilhosa primavera. Olha para o céu e verás uma grande abóbada azul, na mata ouve-se o trinar das aves, nos jardins as flores desabrochando e sorrindo para as crianças, que brincam alegres e felizes, as árvores se vestem de verde, os pássaros fazem seus ninhos, os animais se multiplicam, como num retorno à casa materna, onde só existe o amor.

(26.7.1973)

Um momento na minha vida

Há momentos na vida de cada pessoa que não dá para esquecer... Hoje, dia 16 de novembro de 1974, às 10 e meia da matina, em minha casa acompanhando o desenrolar dos resultados das eleições que se realizaram ontem, dia 15, portanto, quando me foi chamada a atenção pelo nosso cão de guarda, que com grande persistência latia sem parar. Fui ver o que se passava, mas não pude ver nada, voltando ao meu posto, isto se tratando de que o cão é guarda de uma casa nova, que está em construção. Mas o animal continuou latindo e com maior força dava arrancadas na corrente que o prendia, então voltei correndo e, quando cheguei perto do animal, ele parecia apontar
para algo que estava acontecendo, fui ver e de repente estava frente à frente com um homem mal encarado, que parecia ser muito mau. Perguntei o que queria, mas ele não respondeu e se dirigiu para a porta da rua, e daí sim começou a me insultar com palavras de baixo calão. Segui o indivíduo e logo vi se tratar de um malandro. Naquela hora perdi o controle e gritei com ele, disse que chamaria a polícia, se não falasse o que estava fazendo naquela hora na minha casa em construção. Ele nada disse, e alcançou a rua quebrando o portão de saída, evadindo-se rapidamente, subindo pela rua Venâncio da Silva Porto. Parece que foi Deus que naquela hora fez
passar por aí o soldado Nunes, da polícia de nossa cidade, eu aproveitei e registrei a queixa como precaução, pois eu estava sozinha, meu marido havia saído a negócios. O soldado foi no encalço do elemento e, sem muito papo, deu voz de prisão por invasão de domicílio, levando-o em seguida até a delegacia, onde foi preso. Foi aquela a primeira vez que entreguei alguém à polícia, e não pensem que senti satisfação, pelo contrário, me senti muito mal, bastante triste, por ter que fazer aquilo. Quando olhei para o rosto do homem que dizia ao policial não me maltrate, não me machuque, sinceramente me doeu, eu não queria que aquilo acontecesse, mas eu precisei tomar uma providência. Agora, neste exato momento, meu marido foi ao Distrito Policial local para ver o homem, já que ele não estava em casa quando o fato aconteceu. Não sei porque essas coisas acontecem comigo. Se eu fosse escritora
diria "são pequenas coisas grandes que marcam a vida da gente".

(16.11.1974)

Paro agora

De andar, de sonhar, de viver, de querer, de deixar, de morrer, de amar, de buscar, de entregar, de pensar, de subir, de descer, portanto parei. Aqui, agora! Só não paro de escrever, e em cada letra vai um pedacinho de mim, a minha angústia, a minha dor, meu grande amor, meu sofrimento, minha alegria e o pensamento junto com meu cansaço. Eu lutei, sim, com toda a força do meu coração, com toda minha força física e mental, lutei sim e muito mesmo, tudo em vão, agora eu que tive uma força fora do comum, eu que sempre contei com um futuro mais tranqüilo, eu que nunca fiz o mal a quem quer que seja, nem a um animal sequer, segui transpondo todas as barreiras que se erguiam frente a mim. Hoje, agora pela primeira vez, me vejo diante de qualquer coisa intransponível; e eu, finalmente, fracassei. O que fiz de errado, meu Deus, para sofrer tanto? Não, vamos tirar Deus disto, porque ele é bom, ele é tudo e não está pedindo para me martirizar, sou eu que estou fazendo isto. Mas porque sofro, pois se eu errei, se pequei, só prejudiquei a mim mesma não magoando, e não estou culpando ninguém, então porque sofro tanto? Já não sou mais aquela mulher carinhosa, fugiu aquele ser humano e não existe mais aquela pessoa paciente e lutadora, aquele corpo incansável cansou, aquela vida alegre entristeceu, aquele rosto corado empalideceu, aquela flor viva murchou, eu já não existo mais. Mas o que serei agora, uma telha num telhado, uma pérola num colar, uma cerca cercando alguma casa, uma estrada em que todos pisam ou uma pedra que se joga onde se queira? Bem, mas estes são coisas, seres mortos, e eu estou viva, eu ouço, falo, vejo, sinto, tateio, mas não tenho fome e não entendo mais nada nem ninguém. Tudo tomou um rumo diferente do que eu imaginava, tudo se dificulta onde não há dificuldade, tudo se complica onde não há complicação, tudo se fecha sem haver portas nem janelas, todos choram sem derramar lágrimas, todos riem sem demonstrar alegria, tudo está fora do ritmo onde há um ritmo tão bom, enfim, não entendo mais nada e diante disto fracassei, esta é uma barreira intransponível, pode ser que melhore um dia, para que eu possa levantar, de novo erguer as mãos ao alto e pedir a Deus para me refazer.

(10.2.1975)

O fim

Quando um programa de televisão chega ao fim fica só a lembrança, quando termina uma festa, recordações boas ou ruins vão acompanhando cada pessoa que ali esteve festando. Quando cansada de um passeio volto ao lar, lembro as paisagens que ficaram para trás, as frondosas árvores à beira da estrada. Quando a noite acaba, acordo e lembro com carinho os bons e os maus sonhos. Quando termino de ler um livro, fico meditando sobre o que li e que, às vezes, não entendi. Mas o que realmente não entendo é o ser humano, é isto aí, é um negócio fora do sério, não dá realmente
para entendê-lo. Quando encontro uma pessoa desconhecida, que tem um olhar meigo, um sorriso doce, o jeito macio de andar, no meu ver é dócil e meiga. Procuro conversar com ela e noto que é rude e maliciosa, além de debochada. Tem portanto duas personalidades, numa só pessoa, isto no meu ponto de vista é num exato momento, essa
mesma pessoa toma outra atitude totalmente diferente às duas anteriores, é isto que não entendo. Quando alguém ama loucamente sem ser correspondido e vê que é inútil todo o esforço de conquista, então se arma de uma faca e mata, cruel e friamente a pessoa a que tanto ama, e ainda quer se privar da própria vida, então isto é amor?
Ciúme, covardia ou egoísmo. Quantas personalidades tem alguém que age assim, como posso entender quem nem sequer tem amor próprio? Tomamos o exemplo de uma árvore que dá gostosos frutos e, quando o último fruto lhe for tirado ela não vai morrer ou matar, vai se preparar para novamente florescer e dar outros frutos. O leão, que é tão feroz, não mata sua amada drasticamente, mas protege-a de tudo e de todos. Por isto eu digo que não entendo um homem que mata sua amada por ciúme. Eu não condeno a pessoa que busca afeto de alguém fora de casa,quando dentro dela não o encontra. A paz do coração é o paraíso do homem; das penas de amor se sofre, mas não se morre. A
consciência é a voz da alma, as paixões são a voz do corpo. Executa cada ação como se fosse a última de tua vida. Você jamais será feliz se pretende sê-lo à custa dos outros, pisando-os, diminuindo-os,porque a esperança é um empréstimo pedido à felicidade. Com caridade o pobre é rico, sem caridade qualquer rico é pobre.

(20.1.1976)

O sono da inocência

Você dorme, meu filho, e nem sequer pode suspeitar o que sua mãe está escrevendo. Escrevo para que leia somente quando puder compreender tudo aquilo que sinto, tudo aquilo que quero lhe dizer. Lembro-me tão bem do dia que em você nasceu. Do primeiro
choro e o primeiro beijo que lhe dei. Quantos sonhos, quantas promessas lhe fiz.
Você deveria ser a mais bela, a mais inteligente, a mais feliz das crianças. A minha vida deveria transcorrer na alegria de vê-lo crescer, no prazer de educá-lo e torná-lo um homem. Os anos passaram e trouxeram dificuldades, dores e tristezas, maiores do que eu podia imaginar. É muito árduo educar um filho. Talvez por ser essa tarefa tão delicada, feita sem uma aprendizagem prévia. Muitas vezes me vejo educando-o como fui educada pelos meus pais. Mas sei que assim não posso agir. Fui criança num
mundo muito diferente do seu. Meu filho, quero ensiná-lo a conduzir a vida, a usar sadiamente a sua liberdade, a ser responsável pelos seus atos. Quero dar-lhe hábitos preciosos para assegurar seu desenvolvimento.Quero ser firme, regular e perseverante na sua educação. Quero, quero, quero tanta coisa e às vezes não lhe dou até o carinho e a atenção que devo. Meu filho, talvez quando você for chefe de família, compreenda e perdoe os meus erros, eles são tantos. Quantas vezes eu termino o
serviço da casa e, cansada, nem converso com você, sequer o escuto. Quantas vezes chego aborrecida da rua e descarrego sobre você minha zanga. Quantas vezes quero que você seja perfeito se eu, que lhe devo o exemplo, não o sou. Quantas vezes exijo que pense como eu, sem reconhecer que é um ser diferente de mim, com suas vontades próprias e suas opiniões. Quantas vezes reconheço que você está certo em suas atitudes e não me "dobro" por orgulho e vaidade. Quantas vezes você está precisando de mim e eu nem me apercebo. Perdoe-me, meu filho, pelos erros, se eles são muitos,
mas muito maior é o amor que lhe tenho, e tenha certeza que cada erro cometido é reconhecido e uma experiência adquirida, e um passo a mais no caminho do aperfeiçoamento, e mais um avanço que dou para ser a mãe que você merece.

Caderno de Poemas Íntimos, 27.9.1976

O último degrau da escada

Do último degrau da escada fiquei olhando por onde passei. Ando então pelo corredor do prédio e não lembro o número do apartamento que quero visitar. Toco qualquer campainha, abre-se a porta e uma velhota ranzinza olha para mim, muito desconfiada e diz: O que queres? então eu respondo desculpe, eu fiquei olhando do último degrau da
escada e esqueci o número do apartamento, será que a senhora podia me ajudar? Procuro dona Marieta Saltina, a senhora a conhece? Não sou nenhuma informante nem síndica do prédio, não posso te ajudar. Eu insisti dizendo: É minha mãe, por favor, diga-me o que posso fazer? Ela simplesmente fechou a porta sem responder nada.Voltei para o último degrau da escada e fiquei a pensar: Puxa, minha mãe mudou-se para aqui há pouco tempo, será que ninguém a conhece? Nisso vem subindo um senhor de terno e gravata. Eu então, mais que depressa, pergunto: Por favor, o senhor conhece minha mãe? Mudou-se para aqui há pouco tempo, será que ninguém a conhece? Qual o nome dela?, pergunta o senhor, então eu disse: Marieta é o nome dela. Não, responde ele, não conheço, e segue seu caminho. Assim foram subindo todos os moradores do prédio, eu perguntando para um, para outro, e ninguém conhecia alguém com este nome.
Anoiteceu, eu tive que descer e, quando cheguei lá embaixo, fiquei olhando para o último degrau da escada e pensei: Mas está muito claro que não foi esta a escada que mamãe subiu, nem foi este o prédio em que ela foi morar. Pois ela foi pela escada do céu, e o prédio é o paraíso, o céu. Acordei então de um sonho onde eu loucamente procurava minha mãe, e ela já havia falecido há 16 anos. Ninguém podia conhecê-la mesmo, pois aquele prédio não era o paraíso.

Caderno de Poemas Íntimos, 13.2.1979

Renovando o adeus à minha mãe,

Faz tantos anos que partistes, mãe idolatrada. Mas cada dia que passa mais e mais vives dentro de mim, me lembro com carinho as ordens que davas a mim e minhas irmãs, cada qual tinha seu serviço, e a mim sempre restava varrer o pátio, que aliás era
enorme. Maria era o teu nome, amar-te foi tudo o que aprendi, porque tu tinhas muito amor para dar. O que eu mais queria na minha vida era estar sempre junto de ti, e se por acaso isto não acontecia, me lembro que eu chorava, principalmente ao voltar da aula e não te encontrar, para mim era uma fatalidade. Talvez por eu ser a caçula? Mas você amava todas nós igualmente. Lá se foram 16 anos e eu ainda choro tua ausência como quando era criança. Quando eu ponho a mesa sempre lembro de ti e do copo de leite que era indispensável, e tu dizias leite é muito saudável. Óh! Mãe, se hoje ainda fosses viva verias quanta coisa mudou, quanta crueldade há no mundo. A teus pés, junto aos de papai, que está a teu lado, leio teu nome e ainda choro tua ausência: Maria Zatelli de um lado, do outro Giacinto Zatelli. A solidão me invade e talvez seja egoísmo de minha parte, mas eu queria que estivesses viva para poder "bater um papo legal", gíria que tu não conhecestes, mãe adorada. Eu andei tanto por este Brasil afora, mas até hoje não encontrei ninguém igual a ti. Tenho certeza que compreenderias a juventude de hoje e terias, com toda a certeza, uma palavra de amor para dar. E eu, que nada pude fazer por ti, por perder-te tão cedo, não pude retribuir o que por mim fizeste. Hoje peço a Deus pela tua paz e de papai e rezo pela tua alma, que é tudo o que posso fazer. Peço a Deus, mãe querida, que descanses em paz.

Caderno de Poemas Íntimos, 16.4.80